*O Globo
Ao menos para a Justiça, o tempo do consumidor tem valor. As horas perdidas para resolver problemas com fornecedores de produtos e serviços estão entrando na conta das indenizações em sentenças judiciais. Em um ano, saltou de 852 para 1.785 o número de decisões em segunda instância nas quais se levou em consideração o tempo desperdiçado na tentativa de resolver a questão. A teoria do “desvio produtivo do consumidor”, elaborada pelo advogado Marcos Dessaune, autor de dois livros sobre o tema, defende a indenização pelo gasto do tempo vital do indivíduo e pelo desvio de suas atividades.
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Em todo o país, advogados e juristas trabalham na disseminação dessa e outras teorias semelhantes que se aplicam a casos como o da advogada capixaba Geane Ferreira. Em um mês e meio, ela fez 17 ligações, de cerca de 45 minutos cada, na tentativa de resolver um problema simples com um pacote de serviços que inclui TV a cabo, internet e telefone.
– Pela manhã, administro minha loja, à tarde trabalho como advogada e, à noite, estudo. Além de tudo isso, tenho duas crianças pequenas e os afazeres da casa. Essas ligações me causaram um incômodo gigantesco: faltei à aula e prejudiquei meu trabalho. E no fim, vou ter que recorrer à Justiça contra a Net, pois não resolvi — queixa-se Geane.
Justiça quer deter prática abusiva
Procurada pelo GLOBO, a Net entrou em contato com a cliente e, em menos de 24 horas, informou ter resolvido a situação.
O próprio Dessaune, que se dedica há mais de uma década a estudar o chamado dano temporal, foi vítima de abuso. No segundo semestre do ano passado, gastou, em 41 dias, 30 horas na tentativa de solucionar um problema com seu notebook Dell.
— Enquanto tentamos solucionar problemas de consumo que por lei não deveriam existir ou persistir, nós, consumidores, gastamos um tempo de vida finito e irrecuperável e deixamos de realizar aquilo de que mais necessitamos: descansar e trabalhar. Trata-se de um relevante dano existencial que, na ótica da ciência econômica, equivaleria a um custo “indesejado”, portanto, danoso — explica o estudioso.
A Dell informa que realizou, em caráter de exceção, o reembolso do valor do equipamento do cliente. E acrescenta que para atendê-lo adotou medidas que vão além do previsto contratualmente.
A “responsabilidade civil pela perda injusta e intolerável do tempo útil” foi citada pela ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em seu voto numa ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado do Rio para que a Via Varejo — dona das Casas Bahia e do Ponto Frio — receba os produtos vendidos que apresentem defeito no prazo de até 90 dias. O posicionamento da ministra reforça o entendimento do Judiciário sobre o tema.
— O consumidor atravessa uma via-crúcis para reclamar de um produto com defeito. E esse tempo tem um valor que pode ser convertido em moeda. Há uma hora em que o juiz tem que ser firme para ser didático e mudar uma conduta abusiva. E, infelizmente, na maioria das vezes, isso só tem se mostrado eficaz quando mexe com o bolso das empresas — afirma a ministra, que votou favorável à varejista receber produto defeituoso na loja e se corresponsabilizar pela solução do problema.
A Via Varejo não quis se pronunciar. O Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV), questionado sobre como o setor se prepara para o desafio de reduzir o tempo de atendimento, informou em nota que “respeita a decisão do STJ”, mas que, ao determinar que a loja receba o produto com defeito, a decisão poderá levar “a um prazo maior do que o praticado atualmente pelas empresas do setor” na solução dos problemas. E acrescentou que há investimento massivo do setor nos canais de atendimento.
Já o advogado mineiro Vitor Guglinski, que tem se dedicado a estudar o dano moral pela perda do tempo útil, acredita que ele representa uma evolução do direito do consumidor no século XXI:
— O fornecedor se vale de mecanismos que agilizam a propagação e venda de produtos e serviços, como aplicativos e redes sociais, mas não quer arcar com o ônus dessa agilidade na hora do atendimento, quando algum problema acontece — avalia Guglinski, membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).
O desembargador André Gustavo Corrêa Andrade, do Tribunal de Justiça do Rio, foi um dos primeiros no Brasil a conceder indenização pela perda do tempo livre, tema que mereceu um capítulo do seu livro sobre dano moral. Na época, início dos anos 2000, o tema era um tabu, diz Andrade:
— O cuidado que temos que ter hoje é não transformar essa teoria em uma moeda barata. Em toda a sociedade, há tempo de tolerância de espera. O que se quer mostrar é o desrespeito, quando o tempo é usurpado do consumidor por uma conduta abusiva. A Justiça americana é pródiga em sentenças desse tipo, que têm um caráter pedagógico, ou seja, em que, identificada uma prática recorrente, se estabelece um indenização que possa mudar a prática.
Paridade entre cliente e fornecedor
O juiz baiano Pablo Stolze acrescenta:
— Não é justo se ignorar a responsabilidade pela usurpação indevida e comprovada do nosso tempo livre. Se a nossa casa, o nosso celular, o nosso dinheiro, têm valor jurídico, o nosso tempo não teria? Se os mecanismos de atendimento ao consumidor se aperfeiçoarem, teremos menos ações judiciais. E, sem dúvida, o Brasil ganha com isso.
Atribuir um valor ao tempo, defende Dessaune, deve ser tarefa do juiz. Ele não entende que seja possível um tabelamento e nem relação direta com o salário:
— Entre os critérios, sustento que se verifique se envolve um grande fornecedor que notoriamente lesa consumidores de modo intencional e reiterado, e que isso aumente o valor da indenização para que sejam alcançados o efeito punitivo e preventivo da condenação.
Para o professor de direito do consumidor Ricardo Morishita, a introdução do dano temporal traz paridade entre consumidor e fornecedor:
— Se o tempo de atendimento tem custo para o fornecedor, é razoável dizer que o tempo do consumidor também vale. O reconhecimento pelos tribunais desse valor é uma régua de Justiça. A questão é como as empresas vão responder ao reconhecimento desse valor.
Segundo o diretor de Autorregulação da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Amaury Oliva, os bancos já começaram a medir a satisfação do consumidor pelo tempo que ele gasta para resolver seus problemas. É o que chamam de indicador de esforço.
— Há investimentos em todos canais de atendimento para dar mais eficácia e agilidade. Quem não investir na redução desse esforço, vai ficar fora do mercado.