* João Ricardo Costa
Cláusula pétrea. Essa é uma expressão mágica, sempre pronta para ser usada quando se quer fazer proselitismo a favor de alguma coisa. Se a Constituição Federal tivesse todas as cláusulas pétreas que alguns divulgam, já teria virado uma pedreira. Dizem, agora, que o “quinto constitucional”, pelo qual um quinto das vagas nos tribunais é reservado aos advogados e representantes do Ministério Público, é cláusula pétrea.
As cláusulas pétreas são aquelas de que fala o art. 60, § 2º, da Constituição: forma federativa de Estado; voto direto, secreto, universal e periódico; separação dos Poderes; direitos e garantias individuais. Quem agora inventou que o quinto é cláusula pétrea, diz que decorre do princípio de separação dos Poderes. Como assim? Significa que, se não houver o Quinto, os poderes não estarão mais separados?
A existência do quinto constitucional nunca foi pacífica, e entre os juízes de carreira sempre foi muito questionada. Exemplo disso é o fato de que em recente pesquisa feita pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) 80% dos magistrados se manifestaram pelo fim do quinto.
É importante notar que não se trata de uma posição gratuita ou mero despeito de juízes pelos advogados ou promotores; pelo contrário, há muitos magistrados oriundos daquelas carreiras que, por sua competência e integridade, conquistam o respeito de seus pares, notadamente por incorporarem a condição de julgadores e não representantes dos advogados dentro dos tribunais.
Todavia, num país como o Brasil, em que, como cada dia mais se vê, a política tem alto grau de contaminação por interesses não republicanos, as próprias indicações corporativas aos tribunais não fogem à regra, com campanhas eleitorais já no nascedouro, passando depois por uma prática de beija-mão nos tribunais e culminando com a bênção final no Executivo.
Por isso, até causa estranheza quando se ouve, em tom de crítica, que os juízes não são eleitos pelo povo: o ingresso por concurso público é a garantia de qualidade técnica e distância dos apadrinhamentos políticos, além de ser cercado por investigações acerca da idoneidade moral dos candidatos. As raríssimas situações de corrupção no Judiciário, notadamente quando em comparação com os outros poderes, são indicativo disso.
Infelizmente, com muita frequência, as indicações pelo quinto constitucional não estão revestidas desse grau de segurança e obedecem muito mais à relação com o poder do que a qualquer dos requisitos esperados de um bom juiz. É este o principal motivo pelo qual tantos magistrados veem com desconfiança o instituto.
É de se notar que os juízes de carreira são submetidos, desde o ingresso por concurso público, à fiscalização por suas corregedorias e pelo Conselho Nacional de Justiça. O que não ocorre no processo seletivo dos magistrados oriundos da advocacia. A começar pelo organismo que faz a primeira etapa da seleção.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em que pese a sua consagrada importância na República, carece de controle social, aspecto central em modelos constitucionais que consagra ao povo a fonte de todo o poder.
O objetivo não é a imediata extinção do quinto: pelo contrário, é necessário fazer um amplo debate para que a sociedade decida acerca de sua utilidade e, se considerar que deva ser mantido, seu aperfeiçoamento, até para tomar cautelas contra carreirismos.
JOÃO RICARDO DOS SANTOS COSTA, 54, juiz, é presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), professor de direitos humanos da Escola Superior da Magistratura (ESM) e membro do Tribunal Permanente dos Povos
Fonte: Folha de S. Paulo