* Folha de S.Paulo
Em setembro, quando Raquel Dodge assumir o cargo de procuradora-geral da República, para o qual foi aprovada no Senado na última semana, o Brasil passará a ter, pela primeira vez, quatro mulheres no comando das principais instituições jurídicas nacionais. Dodge se juntará a Cármen Lúcia, que preside o Supremo Tribunal Federal, Laurita Vaz, líder do Superior Tribunal de Justiça, e Grace Mendonça, primeira mulher a assumir o comando da Advocacia-Geral da União (AGU).
O que isso significa na prática para a Justiça brasileira —e para as mulheres que trabalham no sistema judiciário? As carreiras jurídicas têm cada vez mais representantes do sexo feminino. Nos últimos anos, por exemplo, o número de mulheres inscritas em grande parte das seccionais da OAB tem superado o de homens.
O problema, para alguns analistas, é que, em sua maioria, elas permanecem na base da pirâmide, e não em posições de comando – emulando outros setores da economia. Assim, Cármen, Laurita, Raquel e Grace seriam apenas notáveis exceções.
“Elas prevalecem (em número), mas, à medida que a carreira avança, vão ficando pelo caminho por que veem que não vão chegar ao topo”, diz à BBC Brasil Patricia Tuma Martins Bertolin, professora do Mackenzie e autora do livro recém-lançado “Mulheres Advogadas: Perfis Masculinos de Carreira ou Teto de Vidro”, baseado em sua pesquisa de pós-doutorado.
No estudo, Bertolin investigou dez grandes escritórios de advocacia do país. Em apenas dois deles encontrou números iguais de mulheres e homens na condição de sócios. Nos demais, as mulheres são contratadas em maior número já no estágio, sendo também a maioria nos patamares iniciais da carreira, mas, à medida que esta avança, tendem a permanecer em posições subalternas.
“A maioria das que ascenderam conseguiram fazê-lo antes de serem mães”, explica Bertolin.
E, quando mães, precisam se submeter a condições muito difíceis: “Abdicando de fins de semana, trabalhando de madrugada, sob grandes pressões. Em troca da flexibilidade de não ter um horário rígido para entrar (no escritório), elas vivem em ritmo alucinante, que gera um alto índice de afastamento por doença. E muitas voltam da licença-maternidade com menos chance de estar no páreo para serem promovidas.”
Além disso, para Bertolin, no meio jurídico “existe a concepção de que os cuidados com a família devem ser assumidos prioritariamente pelas mães. Ninguém na minha pesquisa questionou o fato de ‘por eu ser mãe, sou eu que sou chamada na escola, que tenho que contratar a empregada…’. É algo naturalizado e que se repete em outras profissões, como mostram pesquisas em carreiras como a medicina”.
MAGISTRATURA
Na carreira jurídica pública, segundo o censo do Poder Judiciário de 2014, há por exemplo 64% de magistrados homens e 36% de mulheres. À medida que a hierarquia sobe, a diferença aumenta ainda mais: os desembargadores brasileiros são 78,5% do sexo masculino; os ministros de tribunais superiores e do STF são 81,6% do sexo masculino.
Para Maria da Gloria Bonelli, professora sênior do Departamento de Sociologia da Ufscar e pesquisadora do tema, a ascensão na carreira pública é “complexa” para mulheres. De um lado, a ingressão via concurso ajuda a neutralizar diferenças de gênero e garantias trabalhistas, como licença-maternidade de seis meses. Mas quando o avanço depende de nomeações, há mais empecilhos.
“Muitas sentem que não foram discriminadas, porque a carreira pública neutraliza (distinções de gênero). Mas outras dizem que precisaram se dedicar o dobro”, diz Bonelli à BBC Brasil. Em outros poderes, há desequilíbrio ainda maior do que no Judiciário, apesar da existência de cotas para candidatas mulheres.
Nas últimas eleições, por exemplo, apenas 13% dos prefeitos e 14% dos vereadores eleitos eram mulheres, segundo o Tribunal Superior Eleitoral. “Não é algo que venha só dos homens, mas dos valores da sociedade. Muitas se escondem atrás do escudo de profissional irretocável para que a condição de gênero não pese demais. (…) Muitas delegam tarefas a outras mulheres, com todas as culpas que isso traz.”
No Supremo, a ministra Cármen Lúcia já fez algumas vezes questionamentos a distinções de gênero. Durante sessão em maio, quando a ministra Rosa Weber foi interrompida por Luiz Fux, Cármen Lúcia se queixou.
“Em todos os tribunais constitucionais onde há mulheres, o número de vezes em que as mulheres são aparteadas (interrompidas) é 18 vezes maior do que entre os ministros. (…) Em geral, eu e a ministra Rosa – não nos deixam (nem) falar, então nós não somos interrompidas.”
Impacto na Justiça?
O debate em relação à presença feminina no Judiciário não se restringe às condições de carreira. Uma questão crucial é se a ausência de mais mulheres no topo impacta a forma como a Justiça é feita e aplicada no Brasil.
Em 2010, o Conselho Nacional de Justiça chegou a afastar um juiz mineiro que, em sentença de um processo de violência contra a mulher, afirmou que a Lei Maria da Penha tem “regras diabólicas” e “que o mundo é masculino e assim deve permanecer”.
Agregou que “uma falsa igualdade tem sido imposta às mulheres, que, em verdade, vêm sendo constantemente usadas nos discursos políticos de campanha”. Em 2014, ganhou as manchetes uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que inocentou um fazendeiro do interior do Estado que fora preso em flagrante por estuprar uma menina de 13 anos em 2011.
A conclusão dos desembargadores da Corte foi de que a menina era prostituta e isso pode ter confundido o fazendeiro. “Podemos encontrar menores de 14 anos que aparentam ter mais idade, mormente nos casos em que eles se dedicam à prostituição”, diz a decisão do TJ.
Para Patricia Bertolin, decisões desse teor “são de machismo explícito”. “O julgador entra com o preconceito dele”, afirma. Maria da Gloria Bonelli também acredita que haveria comportamentos diferentes no Judiciário se houvesse mais mulheres no topo, mas faz ressalvas.
“É algo bastante debatido. Também há muitas mulheres que pensam de forma binária, com critérios hegemônicos masculinos”, diz.
Além disso, diz, “vimos, por exemplo, que apenas botar mulheres (para comandar) a Delegacia da Mulher não melhora. Acaba se tornando um gueto feminino, desvalorizado”. Algumas pesquisas acadêmicas debatem se o domínio masculino no Judiciário dificultaria o acesso à Justiça para vítimas mulheres.
‘AMBIENTE DE RESISTÊNCIA’
Em artigo de 2015 publicado na revista Direito GV, a socióloga Wânia Pasinato analisou as condições de aplicação da Lei Maria da Penha.
Uma de suas conclusões é de que existe “um ambiente de resistência, de instituições que não se prepararam para cumprir com seus novos mandatos e nas quais o machismo institucionalizado bloqueia o avanço e a incorporação de políticas de gênero”.
Mas Pasinato não acredita que aumentar o número de mulheres nas instâncias jurídicas necessariamente ampliaria o acesso à Justiça das vítimas mulheres.
“Existem magistradas, promotoras, defensoras, delegadas muito bem informadas sobre a gravidade da violência contra as mulheres e que atuam pela defesa dos direitos das mulheres. Portanto, contribuem para ampliar esse acesso. Contudo, há aquelas com visões diferentes”, diz por email à BBC Brasil.
“Aquelas que acham que a mulher ainda provoca a violência. Aquelas que acham que é mais importante preservar a maternidade e a família, mesmo que isso coloque em risco a vida da mulher.”
“Isso porque o machismo que invisibiliza a violência contra as mulheres é parte do repertório cultural de homens e de mulheres na nossa sociedade. Não basta ser mulher para ter uma identificação imediata com os direitos das mulheres ou com a violação de seus direitos”, completa Pasinato.
De qualquer modo, as pesquisadoras concordam que a existência de quatro mulheres em algumas das mais altas instâncias jurídicas do país tem aspecto positivo na promoção da igualdade. “A inexistência de mulheres em espaços de poder se torna um funil para as outras mulheres, que acham que a ascensão não é possível”, diz Bertolin.
Para Bonelli, trata-se também de “uma conquista muito importante de uma geração, que por muitos anos cavou seu espaço” no meio jurídico, “em uma época em que se dizia que precisavam trabalhar como homens, em uma profissão masculina”.
“São dimensões diferentes do acesso à justiça, mas que no somatório representam uma sociedade mais igualitária e que respeita os direitos humanos das mulheres”, conclui Pasinato.
Fonte: Folha de S.Paulo