O juiz Anderson de Paiva Gabriel, um dos 18 novos magistrados do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, estreou como colunista do site jurídico Jota, nesta segunda-feira (8). Ele escreveu sobre a jurisdição contemporânea e o contraditório participativo.
“Os personagens do processo interagem, cooperam e dialogam, influenciando na convicção do julgador e permitindo a formação dialética da melhor decisão, ao mesmo tempo em que a legitimam, tornando-a digna do Estado Democrático de Direito.”
Leia a íntegra do texto:
Juiz Hermes e o Estado Democrático de Direito
* Anderson de Paiva Gabriel
Após compartilhar com os leitores do JOTA os desafios enfrentados no primeiro mês na carreira da magistratura, foi com grande satisfação que aceitei o convite para elaborar uma coluna mensal sobre a jurisdição contemporânea e o processo democrático. Espero que se concretize como um espaço que fomente reflexões e contribua para debates produtivos (em adesão ao “livre mercado de ideias”, mencionado no julgamento do RE 683.751/RS pelo STF).
De plano, torna-se necessário esclarecer o nome da coluna e seu objetivo. Buscamos inspiração em célebre texto de François Ost, denominado “Júpiter, Hércules e Hermes: três modelos de juiz”, publicado em 1993 na Revista espanhola Doxa[1]. No referido artigo, foram expostos três paradigmas jurídicos que expressam concepções distintas de direito e de atividade jurisdicional.
O primeiro remete ao juiz Júpiter, típico do Estado Liberal Clássico, e que se limitava a atuar como boca da lei, isto é, limitava-se a reproduzir a vontade do legislador. As partes atuavam com autonomia, sendo a intervenção do juiz reduzida ao mínimo. Esclareça-se que o Estado Liberal se estruturava nos direitos de liberdade, com predomínio do Legislativo (do qual emanava o Direito) e da força social hegemônica da época (burguesia), forjando o chamado Império da Lei, fortemente ligado ao princípio da legalidade (a Era do Positivismo). Nesse sentido, as duas principais legislações processuais da época: o Código napoleônico de 1806 e o Código italiano de 1865.
Contudo, o excessivo liberalismo abalou ainda mais os ideais de igualdade, ensejando a opressão socioeconômica de parte da sociedade e consequente eclosão de movimentos sociais e revoluções em busca de melhores condições de vida e efetiva concretização dos direitos fundamentais.
Dessa crise, emergiu o chamado Estado Social, no qual os juízes passaram a ter um papel ativo, ao mesmo tempo em que o processo deixou de ser um mero instrumento para a tutela de interesses privados e atuação da lei, passando a representar o exercício de uma função pública e soberana[2], com o objetivo de realizar o interesse público de administração da justiça[3]. No ponto, cabe destacar ter ocorrido o que Enrico Allorio declarou ser a história da publicização do Direito Processual Civil[4]. Essa conjuntura levou a uma inexorável maximização da importância do Poder Judiciário e a ruptura de diversos paradigmas
O juiz Hércules surge nesse contexto, em que a passividade anterior é substituída por um ativismo excessivo, motivado por uma incessante busca pela realização da denominada “Justiça Social”. Com efeito, muitos magistrados passaram a realizar a justiça ao seu entender, criando a lei do caso concreto e ignorando a necessidade de segurança jurídica, o que, em certa vertente, deu azo a chamada “loteria jurisprudencial”.
Por fim, preconiza Ost uma terceira tipologia de Juiz, que conjugaria as virtudes das anteriores à necessidade contemporânea de legitimação das decisões por meio do diálogo e da efetivação do contraditório participativo. Trata-se da figura do Juiz “Hermes”, em analogia ao Deus Grego da Comunicação, consubstanciando a disseminação do uso da mediação, do amicus curiae, das audiências públicas…
Com efeito, o magistrado democrático volta-se para a aplicação e preservação das garantias constitucionais, sobressaindo-se aqui o contraditório participativo e a duração razoável do processo. Torna-se, assim, verdadeiro agente garantidor do “processo justo”[5]. A partir dele, deve expandir-se e consolidar-se uma nova consciência jurídica, calcada primordialmente na efetividade dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados[6].
A Constituição Federal Brasileira, mais do que qualquer outra, além de regular os temas materialmente constitucionais, como a organização do Estado e dos poderes, a forma e regime de governo, assegurou um amplo rol de direitos e garantias fundamentais, trazendo ainda normas atinentes ao Direito Civil, Penal, Tributário e Processual.
No tocante ao Direito Processual, torna-se imperioso reconhecer que diante da consagração de inúmeros direitos e garantias tipicamente processuais, revelou-se uma nova conformação ao processo, seja em relação ao processo civil ou penal (e até mesmo nos procedimentos administrativos), adequada ao Estado Democrático de Direito.
Esse fenômeno tornou imperiosa a releitura de diversos institutos, tanto de direito material quanto processuais, reconhecendo-se que vários dispositivos dos Códigos de Processo Civil e Penal simplesmente não foram recepcionados. Há que se repensar, portanto, as normas processuais à luz de uma perspectiva Constitucional, impondo o redescobrimento da trilogia clássica: Jurisdição, Ação e Processo.
Assim, o processo no Estado Democrático de Direito não se satisfaz com o regular e formal acesso à justiça, demandando que se proporcione uma tutela procedimental e substancialmente justa a quem quer que necessite, levando a uma nova dimensão do devido processo legal, hoje encarado como “Processo Justo”. Há que se buscar, portanto, o modelo constitucional do processo, isto é, “o conjunto de princípios e regras constitucionais que garantem a legitimidade e a eficiência da aplicação da tutela”[7].
Leonardo Greco disserta sobre o tema: “O segundo pós-guerra marcou o renascimento do princípio do contraditório. O Estado de Direito que se reconstruiu após os nefastos regimes autoritários, redefiniu as suas relações com os cidadãos, firmando o primado da dignidade humana e a eficácia concreta dos direitos fundamentais, assegurada pelo amplo acesso à sua tutela através da Justiça. Readquiriram relevância o método dialético de solução de conflitos e a paridade de tratamento dos litigantes, componentes essenciais do princípio do contraditório, como fatores indispensáveis à concretização no processo judicial dos valores humanitários nacional e internacionalmente reconhecidos como inerentes ao estágio de civilização atingido pela sociedade humana.
Esse é o grande salto do nosso tempo: de princípio a garantia fundamental. Para isso, o contraditório não pode mais apenas reger as relações entre as partes e o equilíbrio que a elas deve ser assegurado no processo, mas se transforma numa ponte de comunicação de dupla via entre as partes e o juiz. Isto é, o juiz passa a integrar o contraditório, porque, como meio assecuratório do princípio político da participação democrática, o contraditório deve assegurar às partes todas as possibilidades de influenciar eficazmente as decisões judiciais”.
Assim, na concepção clássica, o contraditório podia ser identificado como a garantia de ciência bilateral dos atos e termos do processo (jurisdicional ou mesmo administrativo), com a possibilidade de manifestação sobre os mesmos.
A partir da 2ª metade do Século XX, surge o denominado contraditório participativo, no qual se amplia a atuação das partes ao longo do processo, enquanto o juiz passa a assumir figura ativa apta a coordenar o diálogo e a cooperação entre as partes, tornando a comunicação verdadeira via de mão dupla, em que todos os envolvidos ouvem e são ouvidos num processo dialeticamente estruturado, construindo em conjunto a solução da causa. O processo, passa assim, a ser verdadeiro instrumento de realização dos valores da pessoa humana.
Nesse sentido, há que se abrir a possibilidade de que, por intermédio desse diálogo, as partes, assim como eventuais interessados, participem da formação do convencimento do juiz, influindo, por conseguinte, no resultado do processo. É o direito de influência advindo do Princípio do Contraditório. Esse verdadeiro direito de participação contribui para a legitimação da decisão a ser proferida.
A vertente participativa exige o diálogo, como ferramenta tipicamente democrática, impondo a abertura de vias comunicativas entre o juiz e as partes, mas também impõe às partes o dever de cooperar com o magistrado em prol de uma solução jurisdicional dialeticamente construída.
Evidencia-se, assim, que o contraditório deve ser visto como um verdadeiro direito fundamental, traço distintivo do processo no Estado Democrático de Direito, permitindo a efetiva participação do indivíduo[8] na construção de um ato de poder.
Poderíamos dizer, seguindo as lições de Angela Espindola e Igor Santos, que a democracia, no bojo do processo, recebe o nome de contraditório[9]. Assim, a participação no processo[10], como expressão da democracia, se materializa por meio de um contraditório efetivo, visualizado nessa nova roupagem. É elemento essencial e fator de legitimação democrática das decisões judiciais (em última análise, do próprio poder jurisdicional), repudiando-se a visão ultrapassada que focaliza a parte como simples objeto do pronunciamento judicial no iter procedimental[11], e passa-se a reconhecê-la como sujeito de direitos.
Nesse diapasão, arremata Greco[12]:
“Como expressão do princípio político da participação democrática, o contraditório não é mais exclusivo do processo judicial, mas se estende a todas as atividades dos poderes públicos de que podem resultar decisões que atinjam a liberdade, o patrimônio ou a esfera de interesses de cidadãos determinados. Quando os possíveis atingidos não são determináveis, audiências públicas e outros procedimentos podem tornar viável a sua participação no processo de tomada de decisões dos poderes públicos.”
No Estado Democrático de Direito, o cidadão deve passar a ser visto como participante, e não como simples objeto da intervenção social do Estado[13]. Posto isso, o processo deve incorporar essa premissa, à luz da Constituição Cidadã, e o traço distintivo deste modelo de processo constitucional é o contraditório participativo.
O Juiz inerte, mero expectador, característico do Estado Liberal, bem como a figura oposta, representativa do Estado Social, não se revelam compatíveis com o Estado democrático nem com o processo contemporâneo.
Surge assim, a necessidade de uma releitura do processo, englobando a conduta das partes e a própria figura do juiz, a fim de redimensioná-lo, adequando-o ao dinamismo vivenciado pelo Brasil globalizado.
Emerge dessa visão contextualizada, a jurisdição contemporânea, prestada por meio do processo justo, tendo por traço distintivo o contraditório participativo. Nessa concepção, os personagens do processo interagem, cooperam e dialogam, influenciando na convicção do julgador e permitindo a formação dialética da melhor decisão, ao mesmo tempo em que a legitimam, tornando-a digna do Estado Democrático de Direito.
Muitos são os desafios para implementação de um processo democrático, sendo certo que esse esforço envolverá uma verdadeira revolução cultural e ética de todos os operadores do direito. A presente coluna buscará contribuir para essa transformação, fomentando reflexões à luz das ideias de participação, diálogo e cooperação.
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[1] OST, François. Júpiter, Hércules e Hermes: tres modelos de juez. Revista Doxa – Cuadernos de Filosofia del Derecho, Universidad de Alicante, n. 14, 1993. Disponível em: http://doxa.ua.es/article/view/1993-n14-jupiter-hercules-hermes-tres-modelos-de-juez , último acesso em 01/05/17..
[2] LIEBMAN, Enrico Tullio. Storiografia giuridica “manipolata”. Rivista di diritto processuale. v. 29. Parte I. 1974. p. 108.
[3] TARUFFO, Michele. La giustizia civile in Italia dal’700 a oggi. p. 188.
[4] ALLORIO, Enrico. Significato della storia nello studio del diritto processuale. Rivista di diritto processuale civile. Volume XV – Parte I. Anno 1938 – XVI-XVII. p. 189.
[5] GRECO, Leonardo. Garantias Fundamentais Do Processo: O Processo Justo, p. 1.
[6] GRECO, Leonardo. Novas Perspectivas Da Efetividade e do Garantismo Processual. Estudo em homenagem ao Prof. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. p. 1
[7] THEODORO JUNIOR, Humberto; NUNES, Dierle Jose Coelho. Uma dimensão que urge reconhecer ao contraditório no Direito Brasileiro: sua aplicação como garantia de influência, de não surpresa e de aproveitamento da atividade processual. Revista de Processo, v. 168, p. 108. Fev/2009
[8] ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. A garantia do contraditório. In: Revista AJURIS, n. 74, 1998.
[9]ESPINDOLA, Angela Araujo da Silveira; SANTOS, Igor Raatz dos; o processo civil no estado
Democrático de direito e a releitura das garantias constitucionais: entre a Passividade e o protagonismo judicial. Revista NEJ – Eletrônica, Vol. 16 – n. 2 – p. 150-169 / mai-ago 2011
[10] CAPPELLETTI, Mauro. Spunti in tema di contradditorio. In: Studi in memoria di Salvatore Satta. Volume primo. Padova: Cedam, 1982. p. 210.
[11] ALVARO DE OLIVEIRA, Carlos Alberto. O juiz e o princípio do contraditório. In: Revista de processo, n. 73, 1998. p. 10.
[12] GRECO, Leonardo, “O princípio do contraditório”, in Revista Dialética de Direito Processual, n° 24, março de 2005, ed. Dialética, São Paulo, págs.71/79.
[13] NOVAIS, Jorge Reis. Contributo para uma teoria do Estado de Direito. Coimbra: Almedina, 2006.p. 191.
Anderson de Paiva Gabriel – Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Anteriormente, atuou como Delegado de Polícia do Estado do Rio de Janeiro (2010-2017) e como Delegado de Polícia do Estado de Santa Catarina (2009-2010). Possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2008), especialização em Direito Público e Privado pelo Instituto Superior do Ministério Público (2010), especialização em Direito Constitucional pela Universidade Estácio de Sá (2010) e especialização em Gestão em Segurança Pública pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2011).