AMAERJ | 17 de abril de 2017 08:26

Revista FÓRUM: Mediação é ganha-ganha

POR RAPHAEL GOMIDE

Presidente do Fonamec quer fazer da prática a nova porta de acesso à Justiça. E isso começa este ano no Rio, com a Justiça Restaurativa e Mediação Digital nas Demandas de Consumo

O último caso que Cesar Cury julgou como juiz no Tribunal do Júri foi o homicídio de uma mulher cometido pelo marido. Coincidentemente ou não, no Juizado da Violência Doméstica, onde passou a atuar, a primeira ação que lhe chegou às mãos foi um processo envolvendo o mesmo casal. Já não havia mais nada a fazer: o assassinato já estava consumado. O histórico de desavenças era longo, espalhado por 22 ações. A tragédia começara com uma ameaça. Escalaria para lesão corporal, estupro, cárcere privado. “A vigilância do Estado falhou. A Justiça atuou, mas não foi resolvido o problema. Foi tudo vertical, de cima para baixo, nada horizontal, com a participação deles na construção da solução”, diz Cury, 51 anos.

O episódio foi uma epifania. A partir de então, o desembargador Cesar Cury percebeu que algumas questões demandam mais do que o tratamento convencional. Passou a se dedicar a soluções consensuais de conflitos, junto com um grupo de profissionais que o acompanha até hoje. Cury é presidente do Nupemec (Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos) e do Fonamec (Fórum Nacional de Mediação e Conciliação) e defende que a mediação, a Justiça Restaurativa e outros métodos consensuais de solução de conflitos são muito mais eficientes, rápidos e baratos do que as ações judiciais.

Como exemplo de êxito, cita as Casas de Família em Santa Cruz, Belford Roxo e Bangu, projetos-piloto onde o índice de resolução de conflitos sem judicialização superou os 93% em 2016 – e teve 98,3% de aprovação dos usuários. O Rio de Janeiro é um estado de vanguarda nessas práticas. Pelo Fonamec, Cury vai apresentar este ano ao CNJ um ambicioso projeto nacional, que estabelece a mediação pré-judicial como regra para demandas em áreas como Família e Consumidor. “O objetivo é reter, tratar e resolver todos os conflitos de família antes de se tornarem ação. Ser uma nova porta de acesso à Justiça convencional. Resolver todas as questões na origem.” Leia mais na entrevista à FÓRUM.

FÓRUM: A mediação é a solução para o excesso de processos da Justiça?
Cesar Cury: A meta da mediação não é atacar volume, é resolver conflitos. Mas diminuir volume é uma consequência positiva. Só tem vantagens, é um ganha-ganha! Primeiro, tem uma considerável redução do tempo de resolução; segundo, reduz o custo; terceiro, as partes constroem a decisão juntas, portanto a solução tem mais legitimidade e aceitação. Não há recurso e se cria um ambiente pacífico. Por último, não há a judicialização. A Administração do TJ-RJ acredita no modelo.

FÓRUM: Como o sr. conheceu chegou à solução consensual de conflitos?
Cury: Entrei no TJ-RJ em 1992. Tinha sido delegado de polícia (alguns meses) e defensor público (por um ano). Minha experiência no crime foi no Tribunal do Júri. É o extremo, onde não tem acordo. Já era um juiz maduro. Em seguida, fui atuar no Juizado Especial em Violência Doméstica, em 2004 ou 2005. Aí tive um caso emblemático, que me fez olhar para a mediação – falava-se pouco sobre o tema na época. Meu último julgamento no Júri foi o de um homem que matou a esposa. E, por uma coincidência, o primeiro caso na Violência Doméstica foi do mesmo casal! Eram 22 processos deles: ameaça, lesão corporal, cárcere privado, estupro… O primeiro registro foi uma ameaça banal, escalando até o homicídio. A vigilância do Estado falhou. Não tiveram a oportunidade de diálogo com o poder público. A Justiça atuou, mas não resolveu o problema – tanto que terminou no homicídio. Foi tudo vertical, de cima para baixo, nada horizontal, com a participação deles na construção da solução. Iniciou-se com uma questão mínima, de insatisfação com o término da relação e terminou daquela forma trágica. A partir daí resolvi aplicar o método de tratamento horizontal e outras abordagens, com assistente social e psicólogos. O primeiro uso dos métodos no Rio foi este, em Niterói. Oficinas de parentalidade, grupos de reflexão, círculos restaurativos, Justiça Restaurativa. Havia pelo Brasil experiências esparsas e estrangeiras.

FÓRUM: Qual é a essência da prática?
Cury: Restabelecer a empatia entre agressor e vítima e fazer com que cada um se ponha no lugar do outro. Restaura a dignidade de cada um e a relação. Não quer dizer que voltem a ficar juntos ou amigos, mas volta a existir respeito e dignidade. E não isenta de punição. É apoiado por outros métodos, oficinas de parentalidade, com homens envolvidos em episódios de violência, conjugado com mediação. Deu muito certo: resultou na ausência de recorrência. Zero.

FÓRUM: Como reuniu pessoas com o mesmo ideal?
Cury: Vi que havia gente identificada com a ideia, consegui que fizessem cursos. Todos se envolveram e a coisa foi encorpando até se institucionalizar no Centro de Mediação. Vivem isso. Praticamente todos ainda estão comigo, umas dez pessoas desse grupo original.

FÓRUM: E como o método é visto pelos outros magistrados?
Cury: Há muitos que o adotam atualmente. Nosso objetivo é a consolidação da instituição por resolução do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Hoje ainda depende da iniciativa do magistrado. O CNJ já tem diretiva normativa sobre o tema. Falta um compromisso dos juízes com as diretrizes. Os juízes são muito sobrecarregados. Há desconhecimento da metodologia e da eficácia e, em razão disso, alguma resistência. O juiz é formado para ser julgador, atuar na adversariedade. É uma mudança de paradigma atuar na consensualidade. Hoje, o processo não é a única solução. Há outros métodos tão bons ou até melhores. Em Família, é muito mais razoável que se resolva a questão por mediação do que com sentença. O meio do processo é impróprio, inadequado para tratar certos conflitos.

FÓRUM: Isso não provocaria um esvaziamento da Justiça? Qual seria a função da Justiça?
Cury: A Justiça vai voltar a ocupar o seu lugar de excelência: ser a cláusula de reserva para a sociedade. Para aquilo que realmente não se consiga resolver. O juiz estará desonerado do excesso de processos. A ação tem uma marcha cadenciada, com tempo próprio para estudos técnicos e muitas vezes o conflito não tem desafio técnico-jurídico, mas sociológico, psicossocial. É menos jurídico e mais sociológico.

FÓRUM: E os TJ s apoiam politicamente esse processo?
Cury: A Alta Administração do TJ-RJ está convencida de que vai dar certo. Se os 27 TJs dizem: ‘Vamos fazer!’, temos grande chance de sucesso. Vamos aprovar nos dias 6 e 7 de abril a Mediação Penal. Há laboratórios exitosos. Em maio, começa a Mediação Digital no Rio, que será o projeto-piloto. É uma espécie de PPP (parceria público-privada). Tem TJ, câmaras privadas, empresas, câmaras online. Juntamos peças antes desconexas à mesa. O mérito é montar um fluxo eficiente com sentido para todos. Dividimos por setor, por exemplo, telecomunicações. É uma espécie de PPP (parceria público-privada). As empresas da área criam um ente, que contrata uma plataforma de mediação online, credenciada pelo TJ. Esta passa a ser a porta de entrada de conflitos, que ali são retidos, tratados e resolvidos. As decisões da câmaras online são homologadas, o que é a garantia para a empresa. O TJ entra com os protocolos e o pessoal, os mediadores, técnicos. O custo é das empresas. Há uma taxa judiciária sobre o que for homologado. É interessante para as empresas porque o custo será de 5% do que gastam por processo, cada um em média R$ 20 mil para eles – além do provisionamento de recursos para despesas judiciais.

FÓRUM: E se não houver acordo?
Cury: O que ultrapassar essa fase online cai em uma estrutura física em que profissionais do TJ (assistentes sociais, psicólogos, peritos e mediadores) darão o apoio técnico. Essa é a segunda etapa. Se precisar virar ação, haverá um juiz para conceder tutela de urgência. Defensores e promotores também acompanham tudo. Em suma, a Justiça está presente em toda a cadeia, supervisionando e homologando. Tudo custeado por taxas, que pagam a remuneração dos peritos e dos mediadores. É um círculo completo. Faz todo o sentido. Para a empresa, que tem a segurança de a sentença ser homologada e gasta 90% menos. Para a sociedade, que tem a demanda atendida de forma rápida e eficiente. Para o Judiciário, é a desoneração. Elimina a despesa e ganha receita. Uma ação custa, em média, R$ 2800. Assim, não tem processo e tem receita. É absolutamente revolucionário.

FÓRUM: A Mediação Digital é um software?
Cury: É um software baseado em inteligência artificial, capaz de aprender: quanto mais usa mais aprende. No primeiro momento, parâmetros de decisão são inseridos no sistema. O sistema diz online ao demandante: “Já houve 100 mil reclamações sobre este tema, em circunstâncias semelhantes. 80% das decisões são de indenizações de R$ 2 mil ou devolve o produto.” A pessoa escolhe. O software foi desenvolvido em uma parceria da Universidade Harvard com profissionais de Brasília. A pessoa negocia diretamente com a plataforma. Leva minutos! Se usar o sistema inteiro, leva 18 minutos. E a plataforma interage.

FÓRUM: Se a empresa paga tudo, não pode haver questionamentos sobre fraudes e corrupção?
Cury: O mediador e os peritos são nossos. A Justiça fiscaliza todo o processo. O sistema é muito seguro. Há controle de CPF, com histórico de uso no sistema, cruzamento de dados para identificar fraudes e uso de documentos falsos. E quanto maior o uso, maior a qualidade de resposta. Se passar na primeira fase, na segunda acontece a negociação direta com representante da empresa, por videoconferência.

FÓRUM: Existe resistência de juízes? Essa mudança implica redução de atividade.
Cury: O que tem é falta de informação. Sou abordado às vezes por colegas. Esses casos não deveriam estar nos tribunais! Troca de celular, porta de armário quebrada… Na Europa, Argentina, Guatemala, na maioria dos lugares não está. Temos uma cultura de judicializar tudo. Tem um juiz coordenador, ao fim temos a solução com acordo ou mediação imediata.

FÓRUM: Qual é a expectativa de resolução de casos sem judicialização?
Cury: Nossa estimativa é de ao menos 60%. O piloto são as Casas de Família, de enorme sucesso, em Santa Cruz, Belford Roxo e Bangu em 2016. São feitos filtros sociais: assistentes sociais, psicólogos, mediadores, círculos restaurativos. Filtros para tratamento de conflito. O índice de resolução de casos passou de 93%! E a aprovação foi de 98,3%. Em 20 dias resolvia tudo, com advogados. Uma juíza do Espírito Santo aplicou modelo parecida em Vitória e atingiu 80%, índice semelhante. Não tenho dúvidas de que é a solução.

FÓRUM: Como o Fonamec pode ajudar a implementar esse modelo em todo o país?
Cury: O Fonamec tem a virtude de ser integrado pelos presidentes dos órgãos de mediação dos TJs de todos os Estados. Pessoas que acreditam no método e são comprometidas com essa política. Temos capilaridade. Cada presidente de Nupemec tem os centros de solução de conflitos na ponta da linha. O Fonamec pode traçar políticas com a percepção real do que acontece. Pretendemos formar uma política pública da consensualidade, apresentar a proposta ao CNJ e à Escola Nacional de Aperfeiçoamento da Magistratura. Para criar não só uma política nacional judiciária, mas também acadêmica. O Fonamec pretende ser o principal articulador e responsável por implementar as políticas de resolução de conflitos no país. A segurança de que será implementada vem do fato de os 27 TJs estarem certos de que a política não só é necessária como eficaz.

FÓRUM: Quando será a implantação desses projetos no Rio?
Cury: A partir de maio, com dois projetos: o ciclo completo de Justiça Restaurativa e Mediação Penal, com a participação de delegacias, Juizados Especiais, juizados criminais, Violência Doméstica, Unidades Sócio-Educativas e Presídios. A Mediação Digital nas Demandas de Consumo é o grande projeto do segundo semestre. O Rio é vanguarda, um laboratório e espelho para o resto do Brasil. Em Mediação Digital, seremos os primeiros em larga escala; em Justiça Restaurativa estamos mais consolidados. A questão é pôr em movimento. Vamos conseguir.

Veja aqui a íntegra da revista FÓRUM.