Um dos 18 novos juízes do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Anderson de Paiva Gabriel (30 anos) fez um relato das primeiras semanas como magistrado. No diário, publicado pelo site Jota, ele conta os momentos de dificuldades, surpresas, apreensões, aprendizados e alegrias que vive desde que tomou posse em janeiro.
“O exercício da judicatura é um sacerdócio, e demanda total devoção e compromisso, como pude comprovar nas quatro semanas seguintes. A magistratura não se trata de uma profissão, mas sim de uma vocação, que nos consome e realiza.” Leia abaixo a íntegra do relato:
Diário de Carreira: juiz substituto do TJ-RJ
* Anderson de Paiva Gabriel
O XLVII Concurso da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro teve cerca de 8 mil inscritos. Ao fim das diversas etapas, apenas 18 lograram ser aprovados. Tive a felicidade de estar entre eles.
Como consequência, no dia 24/01/2017 fui agraciado com a honra de integrar o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sendo empossado como juiz substituto pelo desembargador e então presidente Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho.
Já naquela solenidade, era consciente de que um sonho se concretizava, mas que os desafios se renovavam. É o marco inicial da nova e tão almejada carreira, ao longo da qual consagraremos nossas vidas em prol de um ideal de justiça.
Como salientado no discurso de posse, Rui Barbosa já sustentava que a magistratura é a mais eminente das profissões a que um homem se pode entregar neste mundo. O exercício da judicatura, contudo, é um sacerdócio, e demanda total devoção e compromisso, como pude comprovar nas 4 semanas seguintes.
Primeira Semana
Na manhã seguinte, isto é, no dia 25/01/2017, iniciamos o curso de formação. Com efeito, fomos recepcionados na EMERJ – Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro com fantástica palestra dos desembargadores Caetano Ernesto da Fonseca Costa (diretor-geral da instituição no biênio 2015/2016) e Ricardo Rodrigues Cardozo (diretor-geral no biênio 2017/2018), na qual foi enfatizada a relevância do cargo para o Estado Democrático de Direito e a necessidade de permanente aprimoramento intelectual dos juízes, não só para o vitaliciamento como para progressão na carreira. Explanou-se, ainda, como seriam nossa instrução e o início da judicatura.
Importante salientar que a Resolução ENFAM nº 2 de 08 de junho de 2016 disciplina a formação e o aperfeiçoamento dos magistrados. No tocante ao Curso de Formação Inicial, são exigidas pelo menos 480 (quatrocentos e oitenta) horas-aula, distribuídas em até 4 (quatro) meses. Entre seus variados módulos, exige-se um de caráter nacional, promovido diretamente pela própria ENFAM, com a finalidade de integração e conscientização da unidade da magistratura nacional, abrangendo carga horária mínima de 40 (quarenta) horas-aula e duração mínima de 5 (cinco) dias úteis, no qual os conteúdos são necessariamente tratados de forma transdisciplinar e integrados pelo humanismo e a ética.
A direção da EMERJ, primando pela melhor formação possível, esclareceu ter desenvolvido um curso de 582 horas-aula e com um total de 15 módulos, incluído o nacional. Além disso, as palestras, aulas e visitas, em regra, ocorrem na parte da manhã, sendo cada um dos novos juízes designados para auxiliar uma das varas da capital no período vespertino. Registre-se que essas designações são mensais, de forma que cada magistrado terá passado por pelo menos 4 varas, de diferentes competências, ao fim de sua formação.
Imperioso reconhecer o zelo com que foi constituído esse programa, buscando conciliar o conhecimento teórico com o aprendizado prático, maximizando as competências de cada um e potencializando nossa atuação jurisdicional. Não é à toa que os juízes e desembargadores deste Tribunal têm feito dele líder desde 2009 do ranking de produtividade criado pelo Conselho Nacional de Justiça. Há um meticuloso cuidado com a formação e permanente aprimoramento de cada magistrado, o que possibilita que se atenda as exigências de produtividade sem se descurar da imprescindível sensibilidade. Afinal, a cada processo estão em jogo: vidas, desejos, sonhos e, por vezes, a imediata sobrevivência de alguém.
Após essa inesquecível abertura, fomos brindados com palestras de grandes desembargadores do TJRJ em horário integral pelo restante da semana.
Na quinta-feira, o presidente do Tribunal no biênio 2015/2016, Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, bem como seu sucessor, o desembargador Milton Fernandes de Souza, nos contemplaram com sua presença, salientando que apesar dos tempos de crises institucionais e financeiras, deveríamos “trabalhar sempre com sensibilidade e humanismo”.
Na ocasião, nos foi apresentada a estrutura organizacional do TJ e as atribuições administrativas da Presidência, além dos projetos realizados pelo Judiciário fluminense durante a última gestão (os que estão em curso e algumas das novas ideias que serão implantadas).
Com efeito, não poderíamos ter tido recepção mais memorável.
Segunda semana
Nosso curso de formação é coordenado pela juíza Adriana Ramos de Mello, vencedora da XI Edição do Prêmio Innovare, com o Projeto Violeta, que visa garantir às vítimas da violência doméstica toda a proteção necessária em um curto espaço de tempo, prezando por sua integridade e maximizando a interação entre as instituições.
Para cada três novos juízes há um magistrado experiente designado para realizar o acompanhamento e orientação nesses momentos iniciais. In casu, desfruto dos conselhos da juíza Regina Helena Fábregas Ferreira, com destacada atuação nas varas de família. Além disso, esses magistrados se revezam para nos acompanhar em cada uma das palestras.
O processo de vitaliciamento, no entanto, vai muito além do curso de formação, perdurando por 2 anos a contar da posse no cargo de juiz substituto. Constitui etapa de formação e aperfeiçoamento na qual o magistrado é avaliado quanto aos conhecimentos nesse período adquiridos e aptidão para as funções jurisdicionais e administrativas inerentes ao exercício da judicatura. Há a formação de um Conselho, integrado por juízes e desembargadores, que terá competência para analisar, avaliar e aconselhar a atuação dos juízes vitaliciandos, procedendo à análise das sentenças proferidas e prestando a orientação que for solicitada.
Evidencia-se, portanto, que o Tribunal do Rio de Janeiro e a EMERJ realmente nos dão um grande suporte, o que reforça nossa responsabilidade.
Como programado, passamos a segunda semana tendo aulas no período matutino envolvendo a implementação do Sistema de Gestão da Qualidade no Poder Judiciário (SIGA do PJERJ), a gestão processual e rotinas cartorárias, a atividade correcional, dentre outras. Nesse sentido, gize-se as excepcionais exposições da desembargadora Maria Augusta Vaz, então corregedora e atual 3ª vice-presidente) e de seus juízes auxiliares. Visitamos ainda as instalações do plantão judiciário.
Por sua vez, no período vespertino teve início o auxílio nas varas da capital. Cada um dos novos juízes foi designado para atuar em uma determinada competência ao longo do mês de fevereiro. Particularmente, torcia para ser indicado para uma vara criminal, já que atuava anteriormente como delegado de polícia. Considerando a maior afinidade com a matéria, acreditava que seria mais fácil apreender as rotinas cartorárias e observar a gestão do que em uma vara cível ou de fazenda pública.
No entanto, a publicação revelou que eu havia sido designado para a 33ª vara cível da capital, cuja titular é a juíza Cristina Serra Feijó. O que, inicialmente, me causou uma certa tensão, acabou se revelando uma grata alegria. Não poderia ter sido melhor. Não é por acaso que a referida vara foi selecionada para acolher um dos novos magistrados. Sob a percuciente regência da Dra. Cristina, o exaustivo trabalho diário se torna agradável. E as horas transcorrem sem que sequer percebamos. Os processos são tratados à luz de sua singularidade e não como apenas mais um em uma pilha. Apesar dos muitos anos de magistratura, da farta experiência e competência, notei como cada demanda instiga e revigora o ânimo da juíza titular, cujo entusiasmo contagia. Não só a mim, mas a todos os servidores, tanto do gabinete quanto do cartório. Constatei que o reflexo dessa liderança e da harmonia é que todos tinham orgulho de trabalhar na 33ª vara e que havia uma plena sinergia entre os setores. Sem dúvida, será uma inspiração que carregarei para toda a minha carreira.
Mas nem tudo são flores. Comparadas a muitas varas, os números ali são maravilhosos. Ainda assim, contudo, são muitos processos. Espero desenvolver rapidamente a mesma agilidade que a titular possui. Debatemos muitos casos concretos ao longo da semana, mas enquanto eu produzia uma simples sentença ela já havia esvaziado algumas prateleiras de muitos volumes. A experiência rende muitos frutos.
Terceira semana
Na segunda-feira, dia 06/02/17, ocorreu a solenidade de posse da nova administração do TJRJ, assumindo a presidência o desembargador Milton Fernandes de Souza.
No restante da semana, prosseguimos tendo palestras no período da manhã, conjugadas com a atividade prática vespertina na vara.
Destaco a apresentação do juiz Sérgio Luiz Ribeiro de Souza, vencedor da XII edição do Prêmio Innovare (observe-se que o Rio de Janeiro é berço de muitas iniciativas aplaudidas e consagradas), com o projeto “Apadrinhar – Amar e Agir para Materializar Sonhos”. Trata-se de proposta que busca atender a demanda de crianças que não têm possibilidade de reintegração familiar e cuja perspectiva de adoção é remota, geralmente por terem mais de oito anos de idade. O apadrinhamento provedor propicia o suprimento de necessidades materiais, como a aquisição de eletrodomésticos, aparelhos de telefone, material de higiene pessoal, computadores, ventiladores, brinquedos, dentre outros. Há, ainda, o apadrinhamento colaborativo, que permite a prestação de serviços nos abrigos como, por exemplo, tratamentos médicos ou psicológicos ou oferta de cursos para crianças, bem como o apadrinhamento afetivo, que possibilita a criança um vínculo afetivo fora da instituição de acolhimento, através do qual os padrinhos podem passar os finais de semana e as férias com esses jovens. Emocionante conhecer os detalhes dessa iniciativa e observar o êxito que vem alcançando.
Ao longo das tardes (e noites!), tive a oportunidade de observar toda a tramitação dos processos no cartório, tanto dos chamados “físicos” quanto dos eletrônicos, compreendendo o modelo de gestão habilmente implementado.
Não há um solipsismo, mas sim uma complexa engrenagem em que cada servidor exerce uma atividade de relevo para a produtividade final. Assim, há que haver uma conjugação de esforços e uma interação entre todos para prestação da melhor tutela jurisdicional possível.
Prossegui analisando diversos processos e proferindo algumas sentenças, saindo diversas vezes do fórum já no meio da noite, quando o vaivém frenético de pessoas já cessou e os amplos corredores desertos nos lembram a magnitude do Poder Judiciário e de seu crucial papel para a consolidação de um Estado Democrático de Direito.
Dizem que Confúcio afirmou certa vez: “Escolha um trabalho que você ame e não terás que trabalhar um único dia em sua vida”. De fato. Afinal, para cumprir adequadamente a missão constitucional que incumbe a magistratura há que se tê-la como exercício de uma vocação e não como um simples trabalho. Foi essa a reflexão que fiz no pouco tempo que me restou entre chegar em casa e adormecer…. Algumas horas depois já raiava o dia e o desafio diário se reiniciaria.
Quarta semana
Na última semana de fevereiro, tivemos dois dias integrais de atividade prática em Laboratório, aprofundando nossos conhecimentos quanto ao sistema adotado pelo TJRJ e todos os seus meandros. Analisamos ainda os convênios de intercâmbio de dados celebrados pelo tribunal, bem como a operação dos sistemas SEI, SIPEN, RENAJUD, INFOSEG, AJG, etc….
Na manhã da quarta-feira, tivemos palestra com o desembargador aposentado Sérgio Cavalieri Filho, que já foi presidente do TJRJ e que compartilhou toda sua experiência conosco. Já nos dois últimos dias da semana, tivemos simulações de audiências em varas de família e cível, as quais possibilitaram o enfrentamento das mais variadas dificuldades, sendo de fantástica valia para a atuação prática.
No período vespertino, prossegui atuando na 33ª vara cível com a juíza Cristina Feijó. Foram ações de despejo, de cobrança, indenizatórias variadas, monitórias, embargos, possessórias, dentre outras…. Confesso que, assim como inicialmente não desejava ter ido para lá, ao fim não queria sair.
Destaco, ainda, que com o objetivo de aprofundar o conhecimento sobre o funcionamento das varas cíveis, observei também o funcionamento da 19ª vara, zelosamente conduzida pela insigne magistrada Renata Gomes Casanova de Oliveira e Castro. Foram muitos os conselhos e as experiências compartilhadas pelas duas magistradas comigo e, apesar de ter sido breve o tempo de designação, sinto-me muito mais preparado para atuar graças a esse profícuo período.
Considerações finais
Este breve diário de carreira consubstancia um agradecimento aos demais integrantes da carreira e uma exortação aos que pretendem vir a integrá-la.
Agradeço à direção da EMERJ, a todos os palestrantes e funcionários pelo carinho diário e zelo na confecção e execução desse curso de formação. A dedicação de todos vocês redobra nosso engajamento e demonstra que “o magistrado nunca é obra pronta e acabada; é eterno aprendiz: deve nutrir-se de conhecimento para, só assim, poder nutrir as partes de direitos efetivos”. Não posso deixar também de registrar minha gratidão e apreço pelas juízas Cristina Serra Feijó e Renata Gomes Casanova de Oliveira e Castro, bem como por toda a equipe da 33ª vara cível da capital.
Por fim, encorajo todos aqueles que tem o anseio de integrar a magistratura a continuarem se dedicando com afinco aos estudos e jamais desistirem de seu sonho. Admoesto-os, contudo, de que não se trata de uma profissão, mas sim de uma vocação. Nem um trabalho. Trata-se, como já dito, de um sacerdócio, cujo exercício ao mesmo tempo nos consome e realiza. A aprovação no concurso público é um árduo desafio, mas é apenas o primeiro para aqueles que desejam devotar suas vidas ao exercício da judicatura!
P.S. Essa semana tivemos a oportunidade de conviver com Arthur De Peretti-Schlomoff, juiz em treinamento na França. O processo de formação para carreira da magistratura (unificada com o Ministério Público) no mencionado país é bem complexo e extenso, envolvendo um concurso de acesso e 4 anos de estudos e estágios. Foi fenomenal a troca de experiências e pensamentos ocorrida, contribuindo para enriquecer sobremaneira nossos conhecimentos de direito comparado. Aliás, Arthur nos narrou ter chegado a trabalhar por alguns dias como guarda de uma prisão, como policial patrulheiro, como defensor e em uma repartição pública independente (o que se assemelharia lá a uma empresa privada). Não tenho dúvidas da qualidade da formação que estamos recebendo aqui no Estado do Rio de Janeiro, mas tenho convicção de que a oportunidade de passarmos alguns dias observando a atuação de membros do Ministério Público, da Defensoria e Polícia poderia agregar muito a nossa compreensão social e jurídica, conferindo ainda maior legitimidade as nossas decisões. Pugno, assim, pela implementação futura destas passagens ao longo do curso.
Anderson de Paiva Gabriel – Mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Ex-delegado de polícia do estado do Rio de Janeiro (2010-2017) e ex-delegado de polícia do estado de Santa Catarina (2009-2010). Especialista em Direito Público e Privado pelo Instituto Superior do Ministério Público (2010), especialista em Direito Constitucional pela Universidade Estácio de Sá (2010) e especialista em Gestão em Segurança Pública pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2011)
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