POR RAPHAEL GOMIDE
Numa noite em meados da década de 2000, o então ministro do Superior Tribunal de Justiça Carlos Alberto Menezes Direito recebeu em sua casa, no Rio de Janeiro, três desembargadores. Ao fim do encontro, à mesa de jantar, vaticinou: “Quero ver vocês três no STJ.” Os magistrados eram Luis Felipe Salomão, Marco Aurélio Bellizze e Antonio Saldanha Palheiro.Morto em 2009, já no Supremo Tribunal Federal, o ministro viu apenas Salomão ascender à Corte da Cidadania. Em 6 de abril, porém, a profecia de Direito cumpriu-se em sua totalidade, com a posse do ministro Saldanha no Superior Tribunal de Justiça. Os três ungidos por ele chegaram ao STJ.
“É como se estivesse predestinado. E até hoje temos isso muito forte: essa cena à mesa da casa dele. Foi uma premonição que acabou se concretizando”, revela Saldanha, nesta entrevista à Fórum.
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O gabinete 406 da Lâmina 3 do Tribunal de Justiça estava vazio às 18h de sexta-feira, 8 de abril. Nenhum assessor. Estações de trabalho desocupadas, a mesa de seis lugares livre, exceto por livros empilhados, copos e uma xícara de café usados recentemente. Sofá e poltronas pretos diante da TV desligada serviam de repouso para um saco de dormir camuflado e três caixas de mudança: uma continha “livros jurídicos”, duas “livros não-jurídicos”, uma “material de aula”. A mudança havia separado o que iria a Brasília ou ficaria na casa do Rio do já ex-desembargador Saldanha, 64 anos. À mesa, sozinho no gabinete, o novo ministro carioca do Superior Tribunal de Justiça (STJ) mirava o calendário com o timbre do STJ enquanto resolvia ao telefone pendências de saída do TJ-RJ. Passara 28 anos na Casa, boa parte na administração. “Os juízes fazem gincana para ver quem consegue encontrar uma sentença minha!”, brinca.
Havia sido uma semana intensa. Recebera homenagem da AMAERJ, segunda-feira. Quarta fora empossado no STJ no rápido rito da Corte, diante da família, 80 magistrados do Rio, ministros do STF e do STJ, entre os quais os amigos e “padrinhos” Luiz Fux (STF), Salomão e Marco Aurélio Bellizze (ambos do STJ). E já estreava no dia seguinte.
Terceiro membro oriundo do TJ-RJ na atual composição do STJ, Saldanha foi escolhido entre 40 candidatos, na mais acirrada disputa do tribunal, em meio à crise política que resultaria na votação do impeachment de Dilma Rousseff. Em fevereiro, recebeu a indicação, fortalecida pelo apoio do governo e do PMDB-RJ à presidente. Foi aprovado no Senado, em 9 de março, após sabatina que quase não aconteceu. Quinze dias depois, o PMDB fluminense romperia com o Planalto. Saldanha assumiu a cadeira em 6 de abril.
Conhecido pelo bom-humor e a informalidade, o ministro se impressiona com a sisudez da nova Casa, grandiosa e solene. Na primeira sessão da 6ª Turma Criminal, no dia seguinte à posse, disse ter ficado “apavorado”. Não conhecia ainda os casos nem o ritual do STJ. Aos poucos, está certo de se adaptar.
Nesta entrevista à Fórum, Saldanha fala da penúria do TJ quando entrou, de sua participação na criação do Fundo Especial, da angústia de decidir e do caminho até o STJ, “o Brasil representado, por diversos segmentos, formação e culturas”, onde “a liturgia e o formalismo são levados ao pé da letra”.
F: Quando foi o primeiro momento em que se falou o seu nome para o STJ?
S: Difícil… Isso vem lá de trás… O primeiro aceno veio do ministro Carlos Alberto Menezes Direito. Ele chamou três desembargadores na casa dele, no Rio, e disse: ‘Quero ver vocês três no STJ.’ E quem eram os três? Salomão, Bellizze e eu. É como se estivesse predestinado. E até hoje temos isso muito forte: essa cena à mesa da casa dele. Foi uma premonição que acabou se concretizando.
F: E como foi o processo mais recentemente?
S: A vaga estava aberta havia dois anos. Quando abriram para concorrência, aí veio o aceno dos ministros Fux, Salomão e Bellizze, que perguntaram se eu gostaria. Eles diziam que era o momento. Muita gente queria. Eles diziam: “Temos um pacto com Saldanha.” Fux foi meu amigo de Shell. Foi meu estagiário na Shell! Depois nos encontramos na Justiça e fomos juízes-auxiliares juntos na gestão do Ellis. Veio para cá oito, nove anos antes de mim [na realidade, Fux entrou em 83 e Saldanha em 88]. É meu amigo do peito, amigo de família, de infância. Vi os filhos dele nascer. Fui ao noivado do Fux. E Fux tem primazia nessas deliberações, por estar no Supremo. Os três assinaram. A palavra dos três foi: ‘Se Saldanha quiser, o apoio será a ele.’ Havia sete candidatos do TJ-RJ à vaga; 40 candidatos ao STJ. O Rio estaria com uma representação noSTJ inferior à sua importância. (A indicação) Depende do prestígio dos ministros. E os três são ‘barra-pesada’ em prestígio! Fux, Salomão e Bellizze. O prestígio do governo também influencia. Em junho de 2015, começou a disputa; em 6 de outubro foi a votação. Tem investigação social pesadíssima. Fui o mais votado, com 23 de 29 votos. O segundo teve 17, e o terceiro, foi ao segundo escrutínio.
F: A indicação só veio em fevereiro. Qual foi o momento de maior tensão?
S: Foram meses de espera, quase seis meses esperando. A cada dia vem uma novidade. A presidente estava fragilizada, e o Estado que lhe dava mais apoio era o Rio de Janeiro. Mas até o fim é incerto. Se eu não fosse indicado, nas semanas seguintes, o PMDB do Rio já se afastou, saiu do governo.
F: O governo do Rio atuou politicamente para sua indicação ao STJ?
S: Atuou de forma institucional. Porque é uma trajetória política, as lideranças locais e nacionais atuam. Precisa de um político para falar com a presidente. Mas não sofri nenhum tipo de assédio ou especulação.
F: Como é chegar ao STJ neste momento político? Com a Operação Lava-Jato e outras ações, o Judiciário tem assumido certo protagonismo. O que pensa do chamado “ativismo judiciário”?
S: Não é o ideal, o Judiciário assume um protagonismo que não é nosso, mas de quem tem voto e é eleito. Ocorre por um vácuo do exercício da política com credibilidade. A credibilidade duvidosa das forças políticas deságua no Judiciário e não vamos dizer que não é conosco. Mas está errado. Mas não é a Justiça que tem de gerenciar hospital.
F: Alguns projetos parecem surgir como reação ao Judiciário e ao Ministério Público. O que pensa sobre o mandato de dez anos para ministro do STF?
S: A Justiça não pode entrar na arena política. Claro que o juiz tem ideologia. Outra coisa é entrar na arena política. Acho horrível essa ideia de mandato, porque o juiz tem de ter garantias para atuar com isenção.
F: Quando o sr. entrou, em 1988, o Judiciário enfrentava dificuldades financeiras…
S: Muita dificuldade! Era muito simples. Em São Pedro, prendia a mesa com arame. Os recursos materiais eram escassos, controlados. Quando fui para Nilópolis, não tinha um móvel, nada!Vim aqui e o juiz-auxiliar disse que tinha de esperar dinheiro. ‘Como vou fazer audiência?’ E respondiam: ‘Pede emprestado, dá um jeito!’ Ar-condicionado, nem pensar! Era sem paletó por causa do calor.
F: Foi o Fundo Especial que mudou isso?
S: O Fundo trouxe dignidade para a magistratura e ainda reclamam… Imagina! Com o Fundo Especial bancando o custeio, o governo não se preocupa e ficou mais confortável pagar os salários. Só depois veio a criação do subsídio, que uniformizou salários dos juízes nacionalmente.
F: O sr. participou da criação do Fundo Especial.
S: O Fundo Especial mudou a feição e deu autonomia de fato ao Judiciário. Foi uma proposta arrojada: o corregedor era Ellis Figueira, de quem eu era juiz-auxiliar, e o presidente, Thiago Ribas. Na conta única do Estado, as custas ficavam diluídas e ninguém fiscalizava. As pessoas não pagavam, ninguém cobrava porque não se via o resultado. Tinha falsificação; juízes davam gratuidade sem um senso de responsabilidade mais apurado. Pensamos: ‘E se pegássemos as custas dos processos?’ Começamos a arrecadar e houve uma conversa muito dura com o governador, que não queria abrir mão. Ele disse: ‘Passo, mas vocês arcam com toda a despesa de custeio! Não dou mais um tostão para o tribunal, a não ser o salário!’ Aceitamos o desafio. Determinante foi Antonio César Siqueira, Tonico, juiz-auxiliar do presidente. O governador disse: ‘Não dou três meses para voltarem de pires na mão, dizendo que a conta não fecha!’ Depois, propusemos pegar parte das custas e emolumentos extra-judiciais. Não existia nem existe no resto do Brasil, com esta feição só no aqui no Rio! Alguns Estados imitaram depois, mas de forma mais acanhada. ‘Se fiscalizamos, podemos cobrar por isso.” E foi assim. Realmente, mudou a cara do Judiciário. Antes, para comprar uma lâmpada, tinha de pedir ao Executivo.
F: Como foi sua ida para a administração? O sr. contou que declinou do convite e recebeu uma bronca do então corregedor…
S: (Ri) Quando Paulo Roberto Azevedo de Freitas me chamou, eu estava de férias em Búzios e pensei: ‘O que errei?’ Trabalhava em Nilópolis, a vida era tranquila… Cheguei assustado, e o corregedor disse que me queria na administração porque eu tinha experiência em gestão. Agradeci a honra, mas disse que estava iniciando doutorado e declinei. Naquela época, a distância entre um desembargador e um juiz era enorme, tinha uma reverência… Hoje, os juízes têm uma altivez que fico abismado… A gente não falava com desembargador, esperava ser chamado. Entravam na sala, o juiz se levantava! Tinha aquela coisa de nobre renascentista. Hoje ainda tem alguns… Ele não me deu nenhuma confiança: ‘O sr. não entendeu! Convite de corregedor é convite só no nome! É uma convocação! Esteja aqui segunda-feira!’Interrompi as férias e fui.
F: O sr. teve mentores?
S: Sim, claro que houve, a gente se inspira! Humberto Mannes, Sergio Cavaliere, sem dúvida, Paulo Gomes, Ellis Hermydio Figueira e Paulo Roberto Freitas.
F: O sr. ficou anos em Câmara Cível, mas agora atuará na 6ª Turma Criminal, do STJ.
S: Sempre era chamado para a administração. Minha atuação criminal foi pouco expressiva, curta, depois fui promovido a desembargador. Os juízes têm uma brincadeira: fazem gincana para ver quem consegue encontrar uma sentença minha! (risos) Mas participei de iniciativas que tiveram impacto: o Fundo Especial, a divisão de Descentralização da Administração do TJ, como juiz-auxiliar da Corregedoria. Não chega a ser sentença… Não fiz sozinho, é tudo criação coletiva.
F: Qual é a sua opinião sobre a condução coercitiva?
S: É uma medida excepcional para situações excepcionais. A regra é a liberdade, não pode ser a coerção.
F: O que pensa sobre ameaças e ataques a juízes, como o que ocorreu à juíza em São Paulo em março?
S: É execrável e não devia acontecer, mas é o ônus de uma profissão. Não venha dizer que não admite isso! É ônus da profissão. O cara dirime conflitos de interesse, e vai querer que todo mundo saia sorrindo para ele?
F: O STJ é a Justiça do dia a dia, “Tribunal da Cidadania”. Qual é a diferença da atuação do desembargador para lá?
S: É mais difícil, porque lá é a decisão final. Traz uma angústia maior, porque as pessoas não têm outros recursos, na maioria das vezes. Aumenta a responsabilidade.
F: O sr. ainda hoje sente essa responsabilidade ao decidir?
S: Sim, dependendo da causa, dá ansiedade, angústia. O juiz com responsabilidade tem de ter angústia! O que não tem nenhuma me preocupa… Quem decide a vida dos outros sem se perguntar se está sendo justo… O juiz que se preza tem angústia!
F: O sr. se emociona no exercício do cargo?
S: A gente sempre se emociona. Mas, ao longo do tempo, perde um pouco isso e vai criando uma casca, tem de ter cuidado. Como o médico diante da doença, é a gente diante do conflito. A pessoa traz um drama, é sempre um drama, importante para ela. É a mãe que quer ficar com meu filho, ‘a que acho que tenho direito’, a mulher que não se sente atendida pela pensão. E você tem de dizer: ‘Este não é seu, é dele!’ Toda pesquisa de opinião da Justiça a média é de 50% de aprovação. Ninguém perde porque o Direito é ruim. Quando perde é porque ‘o juiz é comprado’, o advogado é incompetente…
F: O que é o melhor e o pior da magistratura?
S: Pergunta difícil… O melhor é poder dar decisões que ajudam as pessoas, soluções boas para as angústias, que dirimam conflitos. A pior parte é que se vai contrariar interesses. Ninguém vem à Justiça achando que não tem razão. E um vai sair sem razão, perdedor. A parte saborosa é quando se vê que alguém é inocente e se dá um alvará de soltura. ‘Vai com Deus!’
F: No discurso na homenagem da AMAERJ, o sr. disse que ‘Está pronto, mas não sabe se preparado’. Qual é a diferença?
S: Estou pronto para trabalhar e enfrentar o necessário. Não sei se estou preparado para a missão… (risos) Acho que nunca se estará totalmente preparado.
F: Também comentou que o STJ é suntuoso, imenso, de “corredores vazios, frios”…
S: É Oscar Niemeyer, né? Concreto que representa grandes folhas em movimento… É imenso. É um tribunal muito bonito, mais que o Supremo. Mas as salas de sessão são pequenas, acanhadas.
F: Quais são as diferenças para o TJ-RJ?
S: É mais impessoal, lida-se com todas as culturas do Brasil. É o Brasil representado, por diversos segmentos, formação e culturas. A liturgia e o formalismo são levados ao pé da letra. Nosso TJ é portas abertas, mais carioca, mas isso não atrapalha a seriedade. Seriedade não pode ser confundida com sisudez. Pode-se ser alegre e sério.
F: Como foi a primeira sessão no STJ?
S: Apavorante (risos)! Tomei posse quarta e na quinta já participei do julgamento, sem saber os processos que ia julgar, sem ter visto nada, sem conhecer a turma. É muita surpresa! Foi uma perplexidade. Falei isso lá. Eles me deram as boas-vindas e me perguntaram como me sentia. ‘Perplexo’, respondi. Já chega jogando.