Os supostos altos índices de criminalidade registrados no Rio de Janeiro por órgãos da segurança pública parecem não se refletir no Tribunal de Justiça do estado. De janeiro a setembro deste ano, as ações penais ocuparam o último lugar no ranking de processos que deram entrada na corte. Nesses nove meses, apenas 17% dos casos protocolados no tribunal eram ações penais.
O número é inferior à produção dos colegiados cíveis e do consumidor, que no mesmo período julgaram 52% e 31% das causas que lhes foram distribuídas, respectivamente. É o que mostra o Anuário da Justiça Rio de Janeiro, que a Conjur lança no dia 10 de dezembro, na sede do Tribunal de Justiça fluminense.
Levando em conta os recursos julgados pelos dois grupos de câmaras com especialização definida, a constatação é que as queixas de consumidores contra fornecedores praticamente dobram as da área criminal — em sua maioria, tráfico de droga e roubos. Assim, enquanto as cinco câmaras especializadas em Direito do Consumidor receberam 44 mil recursos para julgar até setembro de 2015, as oito câmaras criminais receberam 24 mil.
Os dados confirmam uma tendência verificada em 2014, quando o número de processos que deram entrada na segunda instância criminal também ficou na lanterna, com 16% da produção. Em números absolutos, foram 33 mil casos criminais, contra 107 mil ações cíveis em geral e 64 mil recursos de consumidores. Os números revelam que a criminalidade tem um peso muito menor no tribunal do que é mostrado nas manchetes do noticiário e do que aparenta ter na vida real das pessoas. Ou ainda, que os litígios nascidos em lojas e estabelecimentos comerciais em geral dobram os entreveros e afanos registrados nas ruas e becos da cidade.
Em entrevista, o desembargador Paulo Baldez (foto), que preside o grupo de trabalho das câmaras criminais do TJ-RJ, ressalta que o número de julgamentos é proporcional ao número de ações criminais que chegam ao tribunal — em outras palavras, se há mais decisões para os conflitos cíveis e de consumo é porque a porta de entrada de recursos relativos a esses dois campos é imensamente maior.
O desembargador explica que, a despeito da sensação de insegurança que paira sobre o estado, o Judiciário atua na ponta do sistema criminal — isso quer dizer que não pode agir de ofício e depende da Polícia e do Ministério Público para ter uma atuação mais contundente. O primeiro é responsável por investigar as práticas delituosas; o segundo por propor as ações penais. Na avaliação de Baldez, ambos não têm trabalhado de forma satisfatória.
Segundo Baldez, muitas ocorrências não chegam sequer a ser investigadas. O efeito é dominó: a falta de inquéritos leva à diminuição no oferecimento de denúncias que, por sua vez, resulta na abertura cada vez menor de processos criminais. Por causa disso, o TJ-RJ chegou a fechar algumas varas criminais em um passado porque estavam “quase que ociosas”.
Mas o desembargador destaca que a resposta esperada pela sociedade ao problema da segurança pública não virá do Judiciário. É que na avaliação dele a Justiça deve guardar uma posição de neutralidade a fim de resguardar o devido processo legal. “A posição do Judiciário é também o de garantir os direitos dos acusados e produzir um julgamento justo, que pode resultar em uma condenação ou em uma absolvição. Então, na Justiça criminal, é importante esse aspecto de que o juiz é a pessoa que vai examinar as provas, os argumentos da acusação e os argumentos a defesa e, daí, vai proferir uma decisão que seja justa. Esse é o aspecto mais importante na atuação do Judiciário.”, destaca.
Leia a entrevista:
ConJur — Como se explica que, no ranking de processos julgados pelo TJ-RJ, o criminal esteja em último lugar?
Paulo Baldez — Hoje, no tribunal, temos 27 câmaras cíveis, sendo 22 delas de competência genérica e as demais especializadas em consumo. E temos oito câmaras criminais. A quantidade de varas cíveis é muito maior que a criminais. As câmaras cíveis não especializadas têm competência para julgar casos de família, empresarial, orfanológicos, de fazenda pública. Então, se você pegar a somatória das varas cíveis do estado do Rio e da Fazenda Pública… isso tudo vai convergir, no segundo grau, em eventual recurso para as câmaras cíveis. Historicamente, sempre tivemos menor número de varas criminais. Embora a gente tenha essa questão da segurança no Rio de Janeiro, essa sensação que a sociedade tem em relação à ocorrência de vários delitos, isso não tem uma relação direta com o número de varas criminais. Você não pode afirmar “deveríamos ter mais varas criminais”. Evidentemente, a demanda cível é muito mais variada e maior. Sempre foi assim. Embora, a gente tenha uma demanda criminal no Rio de Janeiro bastante acentuada, hoje ela é perfeitamente recepcionada pelas varas criminais existentes.
ConJur — Que tipo de crimes são mais julgados pelo TJ-RJ?
Paulo Baldez — Hoje, sem dúvida, há uma demanda muito grande relacionada ao tráfico de entorpecente. Nas câmaras criminais, a maior quantidade de recursos está relacionada ou ao tráfico de entorpecentes ou ao crime contra o patrimônio, como o roubo e furto. Então, são as demandas mais constantes: tráfico, associação para o tráfico, roubo e furto. Claro que tem outras questões. Por exemplo, o envolvimento grande de policias militares, que acabam virando réu por variados delitos. Com relação aos crimes mais complexos, tivemos uma época muito forte e ainda hoje há a questão das milícias.
ConJur — O problema da segurança pública não se resolve com mais varas criminais.
Paulo Baldez — Não, não vai ser resolvido com varas criminais. O Rio de Janeiro inclusive andou extinguindo algumas varas criminais em outras gestões. A justificativa foi justamente a de que a demanda de ações penais não justificava a existência de determinadas varas, que estavam quase que ociosas. É claro que a demanda criminal pode oscilar. Pode ser que a gente esteja até em um momento de crescimento da criminalidade. Mas tenho certeza de que isso será verificado pelo tribunal, que pode criar novas varas criminais. O número de varas e câmaras criminais que temos hoje é suficiente para responder adequadamente a demanda criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
ConJur — Qual é o papel do Judiciário no combate à violência?
Paulo Baldez — A segurança pública deve ser exercida pelo Executivo: pelas polícias, Secretaria de Segurança Pública e Ministério Público, que deve acionar o Judiciário quando tiver elementos suficientes para isso. Hoje a Polícia Civil tem a necessidade de uma melhor estrutura. É sensível que a Polícia Civil esteja trabalhando. De algum tempo para cá é possível notar que ela se aparelhou melhor para a investigação, especialmente nas delegacias de homicídios, onde hoje se tem uma investigação mais efetiva. Mas ainda há muito o que fazer. Hoje tem registros de ocorrências feitos em delegacias e muitos ficam sem investigação.
ConJur — Essas ocorrências se perdem?
Paulo Baldez — Se houver prisão em flagrante daquele que eventualmente esteja praticando um delito, a investigação é mais simples. Mas quando não há prisão em flagrante, a investigação se torna mais complexa porque exige uma atuação mais efetiva da Polícia Civil com relação à busca de testemunhas e de dados que possam levar à autoria do delito. Então, embora realmente a gente tenha um grau muito grande de ocorrências, nem tudo chega ao Judiciário. Ou quando chega, vem sem um resultado efetivo da indicação da autoria. O Judiciário só entra após a investigação, feita no inquérito policial, que vai para o Ministério Público, que, entendendo que há elementos suficientes de autoria e prova da materialidade do crime, oferece a denúncia. Sendo recebida pelo juiz, inicia-se então a ação penal no Judiciário, que pode resultar em uma condenação ou absolvição, dependendo da prova produzida no processo.
ConJur —Na sua opinião, os julgadores estão preocupados em dar uma resposta à sociedade em uma cidade com índices de violência como há no Rio?
Paulo Baldez — O processo criminal envolve não só esse aspecto de dar uma resposta à sociedade. No regime democrático e de estado de direito, o processo também implica nas garantias do devido processo legal. Então, só pode ser considerado culpado aquele que tem sentença condenatória com trânsito em julgado. Essa visão de dar uma resposta à sociedade talvez se adeque melhor ao Ministério Público, que é o representante da sociedade, o titular da ação penal e quem vai perseguir a condenação em juízo. Agora o Judiciário… o juiz tem que guardar uma posição de neutralidade no sentido de que vai julgar determinada pessoa a quem está sendo imputada um delito. A posição do Judiciário é também o de garantir os direitos dos acusados e produzir um julgamento justo, que pode resultar em uma condenação ou em uma absolvição. Então, na Justiça criminal, é importante esse aspecto de que o juiz é a pessoa que vai examinar as provas, os argumentos da acusação e os argumentos a defesa e, daí, vai proferir uma decisão que seja justa. Esse é o aspecto mais importante na atuação do Judiciário.
ConJur —Os juízes não sofrem pressão da sociedade para julgar os casos com mais rapidez?
Paulo Baldez — Na Justiça criminal, a questão da celeridade tem que ser buscada; mas, muitas vezes, confronta-se com as garantias processuais dos acusados. Então, há todo um rito que deve ser observado. A questão da celeridade e da resposta do Judiciário, muitas vezes, não pode ser tão rápida porque existem processos extremamente complexos. Depende da situação concreta. Se for um processo por crime de roubo, contra um acusado, a tendência é que ande com mais celeridade, sem dúvida alguma. Mas se for um processo com vários réus e acusações variadas, como de [formação de] quadrilha e extorsão, por exemplo, ou envolver uma milícia…. Evidentemente, em razão da complexidade, o tempo do processo será outro. São vários aspectos que estão relacionados à celeridade na Justiça criminal. A Justiça criminal não pode ser célere atropelando-se garantias do acusado porque isso pode gerar a nulidade do processo. Então, tem que se observar o tempo. E a Justiça tem um tempo. Isso é importante porque é uma garantia do cidadão. Não existem julgamentos sumários.
ConJur — As audiências de custódia têm ajudado a Justiça a dar uma resposta mais rápida?
Paulo Baldez — A audiência de custodia está relacionada com a prisão em flagrante. Ela existe para aferir a legalidade e a necessidade da prisão. Hoje, se quem responde ao processo estiver na condição de preso provisório, esse processo tem que ser mais célere. Mas se a pessoa responde o processo em liberdade, talvez o tempo seja outro. Temos que priorizar os processos com réus presos. Então, a audiência de custódia é importante só para se aferir a legalidade da prisão e a necessidade daquele réu responder ou não o processo em liberdade ou se na condição de preso provisório, que é uma exceção. A regra na Constituição republicana é no sentido de que existe uma presunção de inocência e que a prisão, antes da sentença condenatória com transito em julgado, é excepcional. No Brasil, a audiência de custodia vem para tentar dar maior efetividade a essa situação. As vezes temos um preso provisório por furto, o que não justifica ele estar preso.
ConJur — Na sua avaliação, os órgãos responsáveis pela segurança pública deveriam se ater mais às grandes investigações ou no enxuga-gelo dos crimes que ocorrem no dia a dia?
Paulo Baldez — As duas coisas são importantes. Algumas autoridades têm repetido por aí que não é só a Polícia, no sentido mais amplo, que isso [a segurança pública] envolve outros órgãos. Mas evidentemente o núcleo da segurança pública está nas Polícias. Não tenho dúvida nenhuma de que chegamos em um momento que temos que repensar a questão das policias, tanto a militar como a civil. Alguma providencia tem que ser planejada no sentido de que a gente possa melhorá-las, não só com relação à conduta dos policiais, mas também quanto à estrutura, organização e operacionalização. A Polícia tem que estar a serviço do cidadão. Tem que atuar na repressão do pequeno furto, no dia a dia, e tem que fazer ações de inteligência para chegar às grandes quadrilhas. Enfim, a Polícia merece ser melhor pensada para que possa servir o cidadão.
Fonte: ConJur