* Antonio Carlos Esteves Torres
Hoje, as combinações econômicas apontam para um resultado negativo vestido com a indumentária de uma patologia chamada alta do dólar. Os jornais imediatamente fazem repercutir os efeitos dessa doença no órgão mais sensível da estrutura metafísica dos indivíduos conhecido como bolso. Sobra espaço nessa cavidade para o pouco de seu principal conteúdo, dinheiro.
Com a necessária escusa pela metáfora desavisada, lembrem-se de que o fato econômico ganha dimensões tão contundentes que transborda os limites da mera expressão da ciência a que pertence. Com efeito, de econômico, meramente, o fato atinge os bordões psicossociológicos, preços em alta para menos produtos e, daí, menos bem-estar, mais dificuldade, menos felicidade.
Essa equação passa a figurar como o principal protagonista da ópera da vida. Em muito pouco tempo, as relações sociais entram em ebulição e para apagar o incêndio, em cena o Judiciário. A impossibilidade de cumprimento das obrigações, diante da sistêmica estratégia da manutenção das condições contratuais (o famoso pacta sunt servanda), das manobras conhecidas de todos, como, por exemplo, diminuição de quantidade, mal ostentada na embalagem inespecífica, para o preço mesmo ou até aumentado. Todos sabem disso.
Para ilustrar a certeza absoluta de que a canalhice ainda está aos serviços dos poderosos, abram os jornais de hoje e verifiquem como a gigantesca Volkswagen faz, no mundo todo, mandando às favas a proteção ambiental para vender seus veículos movidos a diesel. Máfias, Camorras, ndrangheta são multinacionais, que o digam os cultores das pizzolatices e marinesices exacerbadas.
Notem que a circundar o relato está a ciência comportamental. Parte do “aumento” do valor da moeda norte-americana que, por si, já não é “aumento” do valor da moeda norte-americana e sim “desvalor” do Real, é proveniente de um fator intangível, quase imperceptível, a “corrida” aquisitiva do dinheiro alienígena, para evitar perdas da expressão monetária nacional. É um fator psicológico. Daí psicossociológico, pelo espectro das consequências.
Antes que se possa pensar em usurpação do terreno econômico alheio, por magistrado falastrão, leiam em O GLOBO de hoje (23.9.2015 – Economia – Dólar em novo patamar): “ O dólar acima da cotação de R$ 4, (sic) um divisor de águas, provoca um grande efeito psicológico sobre o mercado”.
Há, portanto, aliás, continua a haver mais coisas entre o céu e a terra, como Hamlet advertia Horácio, do que jamais sonhou sua filosofia. A começar pela fórmula com que se repete a citação, sempre a se incluir um adjetivo interpretativo, vã, a qualificar filosofia, não sou poucos os devaneios que conduzem o raciocínio dos hermeneutas jurídicos. Poucos se atêm ao foco psicológico dos fatos jurídicos e quase ninguém se utiliza do tema de uma pequena grande (desculpem-me o lugar comum) obra, À Margem do Direito (Ensaio de Psicologia Jurídica): “ O direito é, em verdade, um produto social de assimilação e desassimilação psíquica” (op. cit. Ed. Bookseller, Campinas, 2002, pág. 150). Pontes (é assim que tratamos os luminares eternos. Dispensam sobrenome), na elaboração da obra, transitou por manifestações de “espíritos notáveis”, “homens de polpa em assuntos jurídicos”; consultou as “últimas conquistas de psicologia experimental”, a ponto de concluir que a psicologia jurídica “…não deixa de ser, de certo modo, uma teoria basilar do Direito” (op. cit. Pág. 7, Advertência).
As circunstâncias que serviram de inauguração do pensamento, ao alcance de toda gente, foram, propositadamente, localizadas no mundo econômico e nas cenas mais atuais e corriqueiras dessa ambiência larga e de largos tentáculos, abrangentes do universo social. Com uma observação a mais, que, agora, adiciono: todos sabem da existência de fatores que militam em zonas imperscrutáveis do recôndito cerebral. Não se sabe defini-las, nem se poderia fazê-lo, a não ser iniciados da dogmática cientifico-psicológica. No entanto, mais e mais, a análise da realidade dos fatos sociais e suas consequências está a exigir atenção mais acurada para a teoria psicológica. O profissional do direito, especialmente, o juiz, certamente, melhor desempenhará sua função interpretativa se tiver em seu estoque de conhecimento as noções epistemológicas da matéria que estuda o comportamento humano, que possibilitam o julgador a prestar melhor justiça.
Não se há de exigir que o magistrado se transforme num psicanalista de toda hora e todo caso. Mas é inegavelmente desejável que, na observação empírica dos episódios que compõem um litígio, um mínimo de domínio do comportamento humano seja utilizado. Uma ilação de Pontes de Miranda, sobre o ato psíquico em contraposição a um outro, numa relação, leva-o a invocar a – vejam que interessante – origem por bem dizer contratual de todos os direitos. Na sequência: materialização de objeto; (pagamento); ato psíquico de intensidade anulatória do fato jurídico (renúncia); a convenção social (prescrição), o autor reconhece que a extinção de qualquer dos elementos primaciais, psíquico ou social… acarreta a morte dos direitos. (Ob. cit. pág. 147). É com instrumentos como esses, de sístoles e diástoles mentais, que o civilista conclui pela definição de direito, produto da assimilação e desassimilação psicojurídica da sociedade. Pode ser que alguém se contraponha aos argumentos. Haverá quem os tenha por herméticos. Não faltará quem os considere produto de elucubração inútil. Mas, seja quem for, estará obrigado a reconhecer a mecânica mental e os reflexos materiais na vida cotidiana. A fórmula da dinâmica da interação.
Estas linhas, que servem de indumentária a um estudo particular sobre o uso da psicologia no exercício da magistratura, revelam a existência de alguns conflitos dogmáticos e dúvidas interpretativas cujo principal resultado é um mau entendimento do que seja a função julgadora. Agora mesmo, na busca de elementos elucidativos do tema, senti-me obrigado a percorrer as obras que, de uma forma ou de outra, percorrem o caminho nebuloso em busca de respostas positivas acerca da matéria. Inauguramos com Pontes de Miranda, como acima demonstrado, cujas conclusões sobre a atuação da psicologia jurídica, a par de muitas outras observações científicas, ao tratar da formação dos organismos jurídicos, parte de noções da materialidade física e seus instrumentos vibratórios para a obtenção de energia criada e absorvida por corpos, fontes e campos propagativos. Com esta base (que se aproxima do direito natural), o autor chega ao objetivo de, analogicamente, considerar o fato jurídico como agente repetidor de determinadas condições prévias. E, para trazê-lo ao âmbito desses pensamentos de ordem jurídica, complementa”…além do que é necessário aos corpos físicos uma partícula nova, individuante, de reprodução passiva, -a vontade”. (ob.cit. pág. 111). A vontade, leitor desavisado, em resumida linha psicológica, é impulso interior para realização de desejos. Mas, dessa visão simplificada em termos científicos, o próprio Pontes de Miranda provoca, ao diferenciar a vontade psicológica, expressão de desejar, da vontade jurídica, poder querer.
Estão inseridos neste contexto dogmático, lembre-se, embates famosos tangenciadores do tema. Entre enigmas filosóficos como o deus que morre de Nietzsche e o fim da história de Fukuyama, está a Razão Pura do Direito de Kelsen; o sem luta não há direito, de Ihering e a morte do direito de Carnelutti. Todos esses aspectos polêmicos e, até certo grau, indecifráveis, a exigir rios de tinta (que também a consome impressoras eletrônicas) e muita verborragia. É esta a ambiência inevitável em que se inserem, por exemplo, a boa-fé objetiva do art. 422, do Código Civil; o princípio da fraternidade, do preâmbulo dos cânones constitucionais; a hipossuficiência do consumidor.
Todos esses valores e princípios transitam pelo imaginário do julgador, obrigado a analisá-los dentro do contexto do fato, para saber qual das partes contratantes é a mais apetrechada de poder e meios, com o fito de manter o equilíbrio entre os protagonistas do resultado da manifestação da vontade. O magistrado, como se extrai de Calamandrei, no seu multicitado e pouquissimamente lido, Elogio dei giudici, scritto da um avvocato (Ponte Alle Grazie, Milão, 2013, pág.XXIV) se defronta com enigmas, dúvidas e tormentos que se encaixam perfeitamente na advertência calamandreiniana: “A virtude e os defeitos dos juízes não podem portanto ser serenamente avaliados se não quando se considera que esses sejam na realidade a reprodução sobre um plano diverso, e quase se poderia dizer sombra deformada das distâncias, das correspondentes virtudes e fraquezas dos advogados.
Com este aviso sobre a possibilidade de o julgador lançar-se no julgado, como a julgar-se a si próprio, reproduzo a tese inserida na proposta de enunciado levada ao crivo de juristas e operadores de direito: É indispensável o uso da psicologia na definição do comportamento das partes envolvidas em contrato, para a perfeita definição do equilíbrio e igualdade da relação.
A relatoria da comissão designada rejeitou a proposta: não viu sentido no exame psicológico das relações contratuais e reprovou o uso do critério socioeconômico para a definição do equilíbrio entre as partes…
Antonio Carlos Esteves Torres é desembargador do TJ-RJ