Notícias | 12 de maio de 2015 15:25

Da bengala ao funeral: um réquiem da independência do Judiciário brasileiro

* Bruno Bodart e Carlos Eduardo Frazão

No último dia 7 de maio, foi promulgada a Emenda Constitucional 88/2015, fruto da PEC 457/2015, mais conhecida como “PEC da Bengala”. O intuito da reforma constitucional seria apenas o de elevar a idade para a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo Tribunal Federal, dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União ao patamar de 75 anos. Há muitos argumentos favoráveis e contrários a essa medida, mas não serão objeto deste breve ensaio, cujo escopo é diverso: a análise da parte final do artigo 2º da EC 88/2015 (“nas condições do artigo 52 da Constituição Federal”). O dispositivo, que já é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.316, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra) e pela Associação dos Juízes Federais (Ajufe), tomou de surpresa a comunidade jurídica, por ter sido pouco noticiado no curso do processo de aprovação da emenda. Por isso, parece apropriado tecer algumas reflexões sobre a sua compatibilidade com a ordem constitucional.

Primeiramente, é necessário contextualizar o debate. A Emenda alterou o corpo permanente da Constituição para possibilitar, na forma a ser definida por lei complementar, a aposentadoria compulsória aos 75 anos. Porém, até o advento da referida lei complementar, a emenda dispôs que os juízes do Supremo Tribunal Federal, dos tribunais superiores e membros do TCU aposentar-se-ão, compulsoriamente, aos 75 anos de idade, “nas condições do artigo 52 da Constituição Federal”. Em razão dessa parte final, cujo escopo pode não restar claro em uma leitura apressada, o novo artigo 100 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias submete os atuais ministros a sabatina perante membros do Senado Federal (CRFB, artigo 52, inciso III, alíneas a e b). O ponto nevrálgico da controvérsia consiste em saber se essanova sabatina para a manutenção do cargo se revela ou não compatível com a Constituição de 1988.

A questão não passou despercebida no Congresso Nacional, pois vozes do próprio parlamento questionaram a fixação dessas condicionantes: ao apresentar seu “voto em separado”, em 19 de outubro de 2005, quando da tramitação da PEC 457/2005, o deputado Luiz Antônio Fleury consignou expressamente a inconstitucionalidade do artigo 2º da PEC, por ultraje ao princípio da separação de Poderes (CRFB/88, artigo 60, parágrafo 4º, inciso III). Dois foram os argumentos apresentados no voto: em primeiro, a “nova sabatina” se justifica tão somente como mecanismo de ingresso, não podendo transformar-se em condicionante de aposentadoria ou de continuidade no cargo; além disso, e em segundo lugar, impor nova aprovação pelo Senado Federal implicaria manifesta violação à garantia de vitaliciedade, uma vez que “fragiliza[ria] o Poder Judiciário”, de sorte a afetar sua “imparcialidade, já que o interessado em permanecer no cargo ficaria refém de interesses político-partidários, podendo redundar no comprometimento da liberdade e independência do magistrado.”[1].

Conquanto se reconheça que o poder de reforma constitucional seja prerrogativa conferida, pelo artigo 60, ao Congresso Nacional para permitir a adequação das disposições constitucionais às novas exigências sociais, tal atuação encontra limites na própria Carta Magna.

Não é novidade que o constituinte retirou do comércio político ordinário um conjunto de normas, cuja supressão integral enseja necessariamente a ruptura com a ordem constitucional vigente (limites materiais ao poder de reforma — artigo 60, parágrafo 4º). À evidência, essas normas possuem um conteúdo normativo mínimo, sem o qual tudo se converteria em um jogo de retórica para conferir aparência de direito ao arbítrio. Por “mínimo” se deve entender o espectro decorrente da semântica do texto constitucional. Aliás, trata-se de um imperativo democrático, na medida em que se franqueia a qualquer pessoa, iniciada ou não em ciências jurídicas, a possibilidade de interpretar o sentido das disposições constitucionais tendo somente um dicionário a tiracolo.

No que tange ao artigo 60, parágrafo 4º, inciso III, a densificação do seu conceito pode ser facilmente extraída da própria Constituição: a independência e a harmonia, previstas no artigo 2º, são características indissociáveis da separação de Poderes, de modo que qualquer emenda tendente a abolir esse núcleo essencial estará em desacordo com o ordenamento em vigor.

É precisamente essa racionalidade que preside o desenho constitucional de investidura nos cargos de ministro do STF, dos tribunais superiores e do TCU perante o Senado Federal: nomeação executiva após aprovação legislativa (no caso, do Senado Federal). O processo de escolha é prévio, e não concomitante ou posterior, à investidura no cargo. Modelo oposto, condicionando a permanência dos agentes públicos a nova aprovação (ou eventualmente, a aprovações periódicas), tal como instituído pela Emenda ora debatida, compromete substancialmente a independência do Poder Judiciário, núcleo essencial do princípio da separação de Poderes.

De fato, a observância à independência dos demais Poderes não se revela mero capricho ou entrave injustificado oposto pela Constituição à atividade do Legislativo. Existe um fundamento substantivo para tal previsão: a existência de um Judiciário independente é essencial para o respeito aos direitos e às liberdades individuais, para a limitação das prerrogativas do Estado e, consequentemente, para a própria existência e manutenção do Estado de Direito. James Madison, em clássico discurso sobre a importância da independência judicial, afirmava: “Tribunais de Justiça independentes (…) serão uma fortaleza impenetrável contra toda usurpação de poder no legislativo ou executivo; eles serão naturalmente guiados a resistir a toda violação a direitos expressamente estabelecidos na Constituição pela Carta de Direitos” [no original: independent tribunals of justice (…) will be an impenetrable bulwark against every assumption of power in the legislative or executive; they will be naturally led to resist every encroachment upon rights expressly stipulated for in the constitution by the declaration of rights”].[2]

Um juiz independente, em qualquer leitura constitucionalmente adequada, não pode estar sujeito à avaliação discricionária e ao alvedrio de quem quer que seja para a sua manutenção ou retirada do cargo. O ato de julgar, por natureza, desperta antipatias e paixões diversas, decorrentes dos interesses envolvidos na causa. O julgador não pode depender da aprovação política dos membros de outros Poderes para permanecer na magistratura, porque a própria Constituição exige que ele seja independente, como conteúdo indissociável da separação entre os Poderes.

Atrelado a esse argumento, é possível apontar ofensa ao devido processo legal, garantia fundamental prevista no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição. O “recall” legislativo criado pela Emenda Constitucional 88/2015 confere aos parlamentares o poder de ameaçar permanentemente, com a perda do cargo, os seus próprios julgadores, não apenas nas infrações penais comuns (artigo 102, inciso I, alínea b, da CRFB/88), como também em diversas outras matérias de imenso interesse político. Como esperar uma justiça imparcial, independente e que respeite o devido processo legal de uma Corte cujos membros atuam com, no mínimo, oitenta e uma espadas de Dâmocles sobre suas cabeças?

Com tais afirmações não se pretende advogar o engessamento do modelo constitucional de interação entre os Poderes da República. Afigura-se perfeitamente possível — e, por vezes, recomendável — a modificação da engenharia constitucional na busca contínua do aperfeiçoamento das instituições. Entretanto, eventuais modificações não podem fulminar, como faz a EC 88/2015, as garantias de imparcialidade e independência do Poder Judiciário, fazendo-o depender da confiança política dos membros dos demais Poderes.

Em situações extremas como a aqui retratada, é preciso que o Supremo Tribunal Federal, no exercício do controle de constitucionalidade, interdite investidas normativas arbitrárias em desfavor do Poder Judiciário e que estão em flagrante desacordo com os preceitos fundamentais salvaguardados pela Carta de 1988. O acolhimento do pedido veiculado na ADI 5.316, portanto, é a única saída para impedir o que seria apenas uma “bengala” de se tornar o réquiem da independência do Judiciário brasileiro.


[2] Disponível em: <http://press-pubs.uchicago.edu/founders/documents/v1ch14s50.html>

Bruno Bodart é mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Professor convidado da pós-graduação do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público).

Carlos Eduardo Frazão é mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor de Direito Constitucional.

Fonte: ConJur