*João Batista Damasceno
Nas discussões sobre imbróglio envolvendo juiz e agente público em Lei Seca não se analisaram o fato originário, a sentença ou o acórdão. Cada um falou e escreveu de acordo com sua imaginação. Roberto da Matta, antropólogo que fez tese sobre malandros e carnaval, sentenciou: “Mexeu com um juiz, mexeu com todos”. “Todos” disse ele, desconsiderando a distinção das atuações no seio da magistratura de acordo com as concepções filosóficas e ideológicas. Nada como a Antropologia McDonald’s para as generalizações, incompreensões dos funcionamentos institucionais e opinião sobre o que não se estudou.
Depois do imbróglio na blitz, a agente de trânsito — não se dando por satisfeita com sua ‘autoridade no asfalto’ — representou contra o juiz no Tribunal de Justiça e perdeu. Depois moveu ação indenizatória e perdeu. Recorreu ao tribunal que confirmou a sentença. Embargou e a decisão foi de novo confirmada. Foi buscar lã e voltou tosquiada; deixou de ganhar e foi condenada. Mas, a mídia lhe deu minutos de fama. É celebridade e uma revista cogita convidá-la para suas páginas. Para mim o problema é anterior àquela ocorrência concreta e se relaciona ao padrão de atuação dos agentes públicos.
Juiz é apenas o cargo a ser ocupado. Se ao invés de dizermos “sou juiz” disséssemos “ocupo um cargo de juiz” ou ‘trabalho como juiz” tiniríamos o título e teríamos maior liberdade para sermos cidadãos, no dia a dia, e autoridade, no exercício da função. Mas, tribunais incentivam a confusão e a hierarquização indevida. Quando se quer atingir um juiz por ato praticado na vida privada diz-se que juiz é juiz o tempo todo. Num julgamento no STF em que um dos seus membros era réu por improbidade administrativa, falou-se que ministro não pode ser processado por um juiz. As competências estão nas leis, mas o discurso hierárquico salvou o ministro.
A ordem jurídica deve ser a referência dos agentes públicos. Juízes não podem andar com carro novo sem placa, salvo até o órgão de trânsito para o emplacamento, assim como agentes de trânsito não podem exigir teste de bafômetro de nenhum cidadão, salvo se envolvido em acidente de trânsito ou, justificadamente, sob fiscalização. É a lei. Policiais não podem revistar carros ou pessoas, salvo se diante de suspeita fundamentada. É a Lei. Em abordagens, todos devem ser tratados com urbanidade. Na disputa da prevalência da carteirada e de quem tem força no Estado Policial, perdem a cidadania e o Estado de Direito.
* João Batista Damasceno é Doutor em Ciência Política pela UFF e juiz de Direito
Fonte: O Dia