Notícias | 05 de novembro de 2014 04:10

A saga de uma idosa

*Peterson Barroso Simão

 Por mais forte e saudável que possa ser alguém, todos possuem o mesmo destino onde se igualam, pois a vida acaba sendo curta e a morte sempre certa. E antes que isso ocorra, tornar-se idoso é o caminho natural que vem com o tempo, sorrateiro e inesperadamente.

Uma tia idosa e solteira, com boa situação financeira, resolveu convidar o sobrinho bastante modesto para morar ao seu lado em um sítio, tal como acontece entre as famílias solidárias brasileiras. Deu ao sobrinho todo o carinho possível, tendo financiado seu ingresso e curso em faculdade.

Encontraram tanta aproximação entre eles, que a tia idosa deu-lhe procuração com poderes gerais e especiais para administrar seus bens, além de comprar um automóvel de luxo.

A idosa foi ficando bastante debilitada, inclusive, com problemas de diabetes enquanto o sobrinho namorava ardentemente uma vizinha, passando semanas sumido.

Para fazer um muro no sítio foi a idosa com dificuldades sacar dinheiro no banco e pagar os pedreiros. Assustou-se, pois o gerente lhe contou que não havia nenhum valor em sua conta corrente, e o cheque especial, devedor.  Explicou o bancário que a pessoa que tinha a conta conjunta com ela, no caso o sobrinho, havia sacado todo o dinheiro.

Assim sendo, a idosa retirou-se nervosa do banco e entrou em um bar para se restabelecer do susto pedindo uma água para tomar um calmante.

Lembrou do seu automóvel zero quilômetro que havia comprado. Abriu a bolsa e procurou o documento, quando observou que o proprietário era o sobrinho.

Atravessou a rua em prantos, procurando o ônibus que a levaria de volta ao sítio. Nesse momento, o tabelião da pequena cidade lhe chamou, dando-lhe parabéns. Ela agradeceu ao senhor, mas indagou por qual motivo seria parabenizada se o seu aniversário só ocorreria meses depois.

Disse-lhe o educado senhor que os parabéns seria pelo casamento. A idosa ficou enfurecida e quis saber que casamento era este. Verificou que havia casado com o sobrinho que não tinha seu sobrenome, por meio de procuração outorgada, conforme autoriza o art.1542, do Código Civil.

Ela, então, pressentiu que estava bastante doente e que tinha uma boa aposentadoria.

O caso que não é novo e nem o primeiro, tratando-se de uma exceção. Constituiu-se em ingratidão e ilegalidade absurdas até que chegou ao conhecimento das Autoridades competentes, interrompendo a finalização da trama.

Embora haja um assentamento de casamento junto ao Cartório de Registro Civil, no plano jurídico o referido matrimônio é considerado inexistente, por falta de requisito essencial que é a manifestação de vontade daquela senhora em contrair núpcias com seu sobrinho.

O fato não se enquadra nas hipóteses de deserdação (art.1961, do Código Civil) ou de indignidade (art.1814, do Código Civil) estabelecidas pela lei civil. No entanto, como sobrinho é parente colateral, pode a tia dispor de seus bens por testamento e não contemplar aquele autor da fraude. Isso porque os parentes colaterais não figuram como herdeiros necessários (art.1845, do Código Civil), não havendo, portanto, obrigatoriedade de que parte da herança seja direcionada a eles.

Além da flagrante ofensa da Constituição Federal no tocante à dignidade da pessoa humana (art.1º, inciso III, da CRFB/88), a conduta do sobrinho violou a principiologia do Estatuto do Idoso, que recrimina qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão praticada contra maiores de 60 anos (art.4º, da Lei n.º10.741/2003).

A instituição bancária que mantém a conta corrente da qual todo dinheiro foi sacado, a concessionária que vendeu o automóvel e o Cartório de Registro Civil onde foi realizado o casamento não têm responsabilidade pelos atos praticados pelo sobrinho. Embora tenham responsabilidade objetiva por eventuais danos causados no exercício de suas atividades, na hipótese não há nexo causal a justificar o dever de indenizar. A culpa exclusiva de terceiro, no caso o sobrinho, configura causa excludente de responsabilidade civil daqueles fornecedores, nos termos do art.14, §3º, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor.

Entretanto, com relação ao sobrinho, este teria o dever de indenizar o prejuízo causado, além de, em tese, estar sujeito às penas dos crimes de falsidade ideológica (art.299) , de estelionato (art.171)  e apropriação indébita (art.168) todos do  Código Penal, dentre outros.

Atualmente, os ideais de solidariedade, humanidade e respeito ao próximo estão encolhendo.

 Os fatos prosseguem no dia a dia, lembrando que os idosos de amanhã seremos nós.

*Peterson Barroso Simão é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

 Fonte: Assessoria de Imprensa da Amaerj