No passado, alcançar o cargo de juiz de Direito era a ambição máxima nas carreiras jurídicas. Mesmo ganhando mal, ninguém pedia exoneração. Muitos promotores de Justiça faziam concurso para a magistratura. Da minha turma do MP-SP (dezembro de 1970), dos 19 aprovados 2/3 ingressou no Poder Judiciário. Alguns por concurso (por exemplo, eu na Justiça Federal e Massami Uyeda na Justiça paulista), outros pelo Quinto Constitucional no TJ-SP (por exemplo, Paulo C. Salles de Toledo), um por nomeação para a magistratura máxima (Celso de Mello no STF).
Mas o mundo mudou e com ele também as carreiras jurídicas. O MP, prestigiado pela Constituição de 1988, conquistou direitos. Na área federal Procuradores da República têm vencimentos superiores aos de Juiz Federal. Não se encontra hoje um agente do MP estadual ou federal fazendo concurso para Juiz. Nem mesmo as vagas do quinto constitucional nos Tribunais de Justiça, nos Regionais Federais ou do Trabalho despertam grande interesse.
Do outro lado da moeda, uma crescente quantidade de magistrados e também de membros do MP, ainda que estes em menor número, vêm buscando outras atividades profissionais. E aí fica a pergunta: o que leva alguém que conquistou um cargo de destaque, vitalício e com vencimentos acima da média a procurar novos caminhos?
Os motivos variam. Ambição, desencanto, excesso de trabalho, falta de estrutura, desânimo gerado pela ineficiência de um sistema judicial onde os recursos se multiplicam, falta de vocação, ausência de reajuste dos vencimentos ou até mesmo ter que trabalhar por anos em comarca longínqua. Seja qual for o motivo, o fato é que o abandono dessas carreiras vem crescendo. Basta ver os editais de inscrição nos concursos do foro extrajudicial dos TJs.
Os que saem, regra geral, optam por concursos públicos para registradores de Cartório de Registro de Imóveis, Protestos, Títulos e Documentos ou Tabelionatos, posições estas que possibilitam melhor remuneração. Magistrados e membros do MP costumam sair-se bem nesses certames. Afinal, possuem boa base cultural, disciplina para estudar e experiência prática. Vejamos alguns exemplos.
O Juiz Federal Lourival Gonçalves de Oliveira, de Belo Horizonte, deixou a toga e assumiu as funções de Oficial do Cartório de Registro de Imóveis de Osasco, SP. Se tivesse permanecido na Justiça Federal, hoje certamente seria desembargador no TRF1. O Juiz de Direito do Distrito Federal Paulo Mortari pediu exoneração do cargo e tornou-se Oficial do Cartório de Protestos de Guarulhos, SP. O Juiz Federal de Porto Alegre, Luiz Fernando Crespo Cavalheiro, exonerou-se do cargo e assumiu em abril de 2007 o Tabelionato de Protestos e Registro de Títulos e Documentos da Comarca de Passo Fundo, RS.
Tais casos revelam uma opção de vida que deve ter custado muitas noites de sono. Mas, com certeza maior preocupação devem ter os que abandonam a toga ou a beca do MP para dedicar-se à advocacia. Aí o risco, é muito maior. Na Justiça Federal de São Paulo fizeram esta opção Luciano de Souza Godoy, Eduardo de Carvalho Cayubi e Arnaldo Penteado Laudísio, com anos de carreira e respeitados na classe,.
Do Ministério Público, o melhor exemplo é o do então Promotor de Justiça Fábio Medina Osório que deixou o MP do Rio Grande do Sul para advogar. Seu sucesso foi tanto que acabou se estabelecendo no Rio de Janeiro, um centro que atendia melhor as suas expectativas de expansão profissional. O Procurador da República Luciano Feldens, exonerou-se do MPF para dedicar-se, com sucesso, à advocacia em Porto Alegre.
Diferente foi o rumo tomado por Flávio Dino de Castro e Costa, juiz federal no Maranhão, ex-presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), ex- secretário-geral do CNJ. Com família constituída, abriu mão da segurança do cargo e ingressou na política elegendo-se deputado federal. Após exerceu a presidência da Embratur e hoje lidera com folga (58,2%) as pesquisas das eleições para governador de seu estado.
Pedro Taques, procurador da República no Mato Grosso, após 15 anos de carreira exonerou-se do cargo e candidatou-se a Senador pelo seu Estado, elegendo-se em 2010 com 708 402 votos. Disputa agora o governo estadual.
Henrique Herkenhoff, natural de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, foi procurador da República e pelo Quinto Constitucional assumiu o cargo de desembargador federal no TRF da 3ª Região. Conhecido por manter o serviço em dia, surpreendeu a todos ao pedir exoneração no fim de 2010, para assumir o cargo de Secretário da Segurança de seu estado natal. Em março de 2013 foi exonerado pelo Governador.
A ambição é vista por muitos como algo condenável. Discordo. Ela é a mola que movimenta o mundo, sem ela viveríamos em uma sociedade pachorrenta, monótona. Portanto, não há que se criticar alguém porque deseja receber mais — e às vezes o mais significa 10 ou 20 vezes os vencimentos de um juiz — ou que está disposto a enfrentar desafios estimulantes. Penso que a ambição só é condenável quando o ambicioso para alcançar seus objetivos não respeita limites, sacrifica princípios, amizades e a ética.
Junto com a ambição, certamente frustrações também acompanham aqueles que desistem dessas carreiras. As causas são variadas. Um Juiz Federal substituto pode sentir-se frustrado sabendo que levará 10 anos para ser promovido a titular e que nunca chegará ao TRF. Um Promotor de Justiça pode sentir-se desmotivado com a perspectiva de ser Procurador da Justiça ao final da carreira, limitando-se a dar pareceres em recursos. Uma Juíza de Direito pode perder o entusiasmo ao passar anos em uma Vara de Infância e Juventude, vendo passar à sua frente os mais tristes dramas humanos sem ter meios de dar-lhes soluções.
A tudo isto se soma o desânimo gerado pela ineficiência de um sistema judicial onde os recursos se multiplicam e a execução se eterniza. E também a descrença da sociedade, que muitas vezes atribui-lhes a responsabilidade por fatos absolutamente distantes de suas funções. Uma Promotora recém aprovada no concurso, pode ser acusada indiretamente pelo cunhado, em pleno almoço da família em um domingo, pela corrupção existente nos altos escalões do Estado…
Pois bem, por múltiplos fatores alguns desistem. Não penso que devam ser criticados. A procura de novos horizontes é muito mais sadia e honesta do que permanecer revoltado, espalhando pessimismo e prejudicando os jurisdicionados, que nada tem a ver com as frustrações de cada um.
No entanto, quem se dispõe a sair deve incluir nos cálculos dos “lucros e perdas” os benefícios que estas carreiras públicas lhes dão e que não são contabilizados. Por exemplo, montar um escritório de advocacia contratando um advogado júnior, um estagiário e uma secretária, não sai por menos de R$ 8 mil mensais, fora os equipamentos. Os concursos para o foro extrajudicial sempre vêm acompanhados de desgastantes ações judiciais, recursos, processos no CNJ e no STF. Em alguns locais há pessoas que, no exercício do cargo há décadas, se negam a deixar o posto e chegam até a fazer ameaças de morte. Há casos, também, dos altos rendimentos despertarem a cobiça de criminosos e o oficial ter que contratar guarda-costas. Inclua-se no pacote a perda de “status”, o sentimento indefinido de perda do poder.
Em suma, definir os rumos da própria vida nem sempre é fácil. A magistratura (não o MP) passa por uma fase difícil. Abandonar a carreira é um passo sem volta, a saída deve ser fruto de decisão tomada com a família, porque todos serão afetados. Sempre é bom, também, conversar com os colegas mais experientes, fazer uma avaliação que vai além da remuneração.
Mas, se o passo decisivo for mesmo dado, o melhor será nunca mais perguntar-se se foi ou não a melhor escolha. A sorte está lançada. Esquecer o passado, adaptar-se e seguir no novo caminho é a melhor solução.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Vice-presidente para a América Latina da “International Association for Courts Administration – IACA”, com sede em Louisville (EUA). É presidente do Ibrajus.
Fonte: ConJur