Luis Felipe Salomão*
Abandono afetivo é termo hoje encontrado com relativa frequência no âmbito forense e nos mais variados manuais de direito de família. Em resumo, consiste na indiferença afetiva dispensada por um genitor à sua prole, um desajuste familiar que sempre existiu na sociedade e, decerto, continuará a existir, desafiando soluções de terapeutas e especialistas.
O que é relativamente recente, contudo, é a transferência dessa contenda própria do ambiente familiar para as salas de audiências e tribunais país afora, essencialmente sob a forma de indenizações pecuniárias buscadas pelo filho em face do pai, ao qual se imputa o ilícito de não comparecer aos atos da vida relacionados ao desenvolvimento social e psíquico de seu descendente.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) terá a inédita oportunidade de uniformizar o entendimento acerca do tema por ocasião do julgamento do recurso de relatoria do ministro Marco Buzzi, previsto para amanhã. A primeira vez em que a corte deliberou sobre o tema foi em 29/11/2005, tendo aquele colegiado, por maioria de votos, sufragado a tese de ser incabível a indenização por abandono afetivo.
O voto condutor apoiou-se em dois fundamentos: a) a consequência jurídica do abandono e do descumprimento dos deveres de sustento, guarda e educação é a destituição do poder familiar (artigo 24 do Estatuto da Criança e Adolescente e artigo 1.638, inciso II, do Código Civil), não havendo espaço para a compensação pecuniária pela desafeição; b) a condenação ao pagamento de indenização, na contramão dos mais nobres propósitos imagináveis, consubstanciaria exatamente o sepultamento da mínima chance de aproximação entre pai e filho, seja no presente ou futuro.
Essa tese foi reafirmada por ocasião do julgamento de outro recurso em 2009. Porém, no primeiro semestre de 2012, a terceira turma abraçou entendimento contrário, tendo sido acolhida a possibilidade de indenização do abandono afetivo. A relatora, Nancy Andrighi, no que foi acompanhada pela maioria dos demais integrantes do colegiado, consignou que o chamado abandono afetivo constitui descumprimento do dever legal de cuidado, criação, educação e companhia, presente, implicitamente, no artigo 227 da Constituição, omissão que caracteriza ato ilícito passível de compensação pecuniária. Utilizando-se de fundamentos psicanalíticos, a eminente relatora afirmou a tese de que tal sofrimento imposto à prole deve ser compensado financeiramente.
Diante do dissídio jurisprudencial entre as terceira e quarta Turma do mesmo tribunal, a Segunda Seção do STJ apreciará os embargos de divergência.
O julgamento é importante e realça o papel do Tribunal da Cidadania, no sentido de uniformizar a jurisprudência nacional como último intérprete da lei federal. Certamente, ambas as posições têm seus pontos virtuosos e merecem detida reflexão.
A professora Maria Berenice Dias foi no cerne da questão: “O grande desafio dos dias de hoje é descobrir o toque diferenciador das estruturas interpessoais que permita inseri-las em um conceito mais amplo de família. Esse ponto de identificação é encontrado no vínculo afetivo.”
A posição quanto à não indenização tangencia pontos sensíveis acerca do tema, notadamente a indesejável intervenção do Estado na família e a desjudicialização das relações sociais.
Em outras palavras, o direito de família deve observar uma principiologia de intervenção mínima neste campo — pois envolve bens especialmente protegidos pela Constituição, como a intimidade e a vida privada, erguidos como elementos constitutivos do refúgio impenetrável da pessoa e que, por isso mesmo, podem ser opostos à coletividade e ao próprio Estado.
Finalmente, a migração para os tribunais de temas antes circunscritos ao ambiente familiar merece mesmo reflexão não somente de juristas, mas de terapeutas e cientistas sociais, como forma de análise da família no contexto do novo milênio.
Assim, realizada essa breve abordagem acerca das posições contrária e favorável da indenizabilidade do abandono afetivo, é mesmo hora propícia para que o STJ uniformize a jurisprudência sobre esse delicado tema.
De toda sorte, independentemente da conclusão a ser obtida no julgamento, o debate ora estabelecido parece, de fato, confirmar que a chamada “modernidade líquida”, segundo Bauman, promove uma progressiva eliminação da “divisão, antes sacrossanta, entre as esferas do ‘privado’ e do ‘público’ no que se refere à vida humana”.
Luis Felipe Salomão é ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ)
Fonte: O Globo