* O Globo
O Estado do Rio acumula, sozinho, pouco mais de um terço das ordens de prisão — inclusive contra bandidos de alta periculosidade — negligenciadas pela polícia no país
A política penitenciária do país coleciona evidências de sua falência dentro e fora das prisões. No interior delas, aglomera-se uma população carcerária em torno de 600 mil pessoas, um contingente que ultrapassa, em muito, o número de vagas nas masmorras (em 2015, o déficit era de quase 250 mil). Externamente, uma fila imaginária de inquilinos que deveriam estar do outro lado do muro forma um igualmente elevado quinhão: segundo o Banco Nacional de Mandados de Prisão, órgão ligado ao Conselho Nacional de Justiça, o número de ordens judiciais de detenção não cumpridas, contra criminosos ou pessoas generalizadamente em débito com a Justiça, chega a quase 450 mil no Brasil. A maioria dessas ignoradas determinações concentra-se em São Paulo, Minas e Rio de Janeiro.
No Rio a situação é particularmente grave. O estado, sozinho, tem nas gavetas da sua polícia 130 mil mandados expedidos pela Justiça fluminense. Para efeitos de comparação, isso corresponde a quase três vezes o total da população carcerária (47 mil detentos) do Rio de Janeiro, embora cada ordem de prisão não corresponda necessariamente a um réu diferente. Mesmo considerando-se, ainda, que boa parte das buscas coercitivas determinadas pela Justiça se refira a crimes de menor expressão (pensões alimentícias que não são pagas, por exemplo), entre os foragidos há bandidos do topo da hierarquia do crime organizado, como O GLOBO mostrou em reportagem na edição de anteontem.
Ou seja, tanto quanto a quantidade de mandados não cumpridos (pouco mais de um terço do total nacional), a estatística preocupa pelo alto grau de periculosidade de parte considerável da fila de potenciais, mas inalcançáveis, inquilinos do sistema prisional. A curva desses esquecidos vem convergindo de forma mais acentuada, para cima, nos últimos anos: o Tribunal de Justiça do Rio envia todos os dias à polícia uma média de 200 ordens de prisão; dessas, apenas 50 são cumpridas — do que resulta, a cada 24 horas, 150 criminosos que deixam de começar a acertar as contas com a lei.
Pior: a inépcia da polícia, neste aspecto, não é episódica. Mandados não realizados são um problema tão crônico quanto as demais mazelas da política carcerária, e em nível nacional: segundo o CNJ, cerca de 10 mil ordens, em todo o país, aguardam pelo menos 20 anos para serem cumpridas, indicador de que milhares de criminosos logo terão as penas prescritas sem que tenham passado um único dia atrás das grades.
A questão dos mandados é um problema a ser atacado, mas a realidade do sistema prisional lhe impõe um nada negligenciável complicador: caso as ordens sejam cumpridas, como receber mais detentos numa rede de presídios sem vagas? É uma equação que implica soluções multidisciplinares. Mas que não pode deixar de ser resolvida. O poder público não pode enfrentar suas próprias omissões com mais leniência.
Fonte: O Globo