* João Batista Damasceno
O Carnaval é um marco civilizatório de nossa cultura. Antes dele, a prática era o Entrudo, brincadeira violenta e grosseira. Sua principal característica era o lançamento de todo tipo de líquidos contra os passantes embaixo das janelas ou pessoas que fossem encontradas na rua. Normalmente jogava-se o que existia nos penicos. Por semanas as famílias guardavam seus dejetos para lançá-los em quem ousasse sair de casa. Havia repressão ao Entrudo. Mas não foi com ela que o Brasil mudou seus hábitos. A transformação do modo de brincar o Carnaval decorreu de esforço civilizatório, educação e interlocução. O que antes era uma guerra de todos contra todos se transformou em poesia e alegria.
A apropriação da festa pela indústria cultural não eliminou as iniciativas da sociedade, incluindo os blocos. As tentativas da polícia de impedir o desfile do Chave de Ouro, no Engenho de Dentro, nas Quartas-feiras de Cinzas, evoca a cultura da resistência popular. Os conflitos nos encontros dos blocos Cacique de Ramos e Bafo da Onça foram apenas uma demarcação de espaços durante o Carnaval.
O Carnaval é uma festa vinculada a sentido religioso. A Semana Santa ocorre na primeira Lua Cheia após o início do nosso outono. Os 40 dias antecedentes à Semana Santa são a Quaresma. Para cristãos, tempo de reflexão, arrependimento e caridade. Antes dela, a festa da carne; o reinado de Momo.
Na véspera de sagrar-se cardeal, o arcebispo do Rio, Dom Orani Tempesta, concedeu entrevista ao DIA na qual falou sobre sua experiência de ter ido à Cidade do Samba e visitado o Cacique de Ramos. Pastoral, falou de sua missão de cuidar do povo católico e manter o diálogo com todos. Assim, sentiu-se chamado a ter diálogo com a cultura, que o samba o é, e onde, segundo ele, “há um trabalho bonito de poesia”. Não se fez arredio ao Carnaval pelo apelo sexual nele existente. Para ele, “às vezes se tomam alguns aspectos do samba ou mesmo do Carnaval e colocam como se fosse o único, sem se destacar as pessoas que trabalharam, colaboraram para fazer as fantasias”. Isto lhe pareceu “um ponto menor, pois a grande maioria está ali suando, trabalhando até demais, no calor do Rio de Janeiro. Se não houver diálogo, não houver conversa, não será possível conhecer o outro”.
Nestes tempos de intolerância, de cerceamento da interlocução que nos propiciou ao longo da história a conciliação e de criminalização de movimentos sociais e até da advocacia que defende a liberdade, a conduta de Dom Orani pode ser um norte que nos possibilite a convivência com quem pensa diferente.
João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política pela UFF e juiz de Direito
Fonte: O Dia