* João Batista Damasceno
O acorrentamento de jovens negros e pobres na Zona Sul do Rio de Janeiro não é novidade. Desde 2010 O DIA noticia fatos desta natureza. Isto também é corriqueiro na história do Brasil. A instituição do pelourinho foi uma tentativa estatal de suprimir a vingança privada e submeter o castigo corporal a um agente do Estado. Nem é novidade a execução de um jovem por segurança particular, com tiros no rosto em plena luz do dia, na periferia. Depois de muitos anos pela Baixada Fluminense, dentre os quais 18 anos como juiz, posso afirmar que tal fato também é corriqueiro. Novidade foi a filmagem.
A história da humanidade é uma história com violência. Mas nenhuma sociedade conviveu pacificamente com a violência como temos vivido. Convivemos cotidiana e pacificamente com atos de violência que acabam matando o que nos caracteriza como humanos. Por isso vivenciamos a busca da felicidade fora de nós. Mais do que a maldade, temos presenciado o império da perversidade e da bestialidade.
É a violência ‘nossa’ de cada dia. Ela está presente sempre que se consegue impor a destruição e o desrespeito ao invés da construção e da cortesia; está presente em tudo que separa, divide ou destrói; está presente na desconsideração aos outros por suas carências, formas de ser, de viver ou de ver a realidade; quando por falta de argumento para promovermos o convencimento de quem pensa ou sente diferente, o ridicularizamos. Igualmente quando nos calamos frente a uma injustiça ou quando desviamos o olhar para não estabelecermos relação com quem precisa de ajuda. Por lavar as mãos, as sujamos.
Há uma violência no noticiário — por vezes exponenciada por padrões anômalos ao bom jornalismo — que nos indigna, nos revolta e nos aterroriza. Mas há também a sorrateira, que penetra em nossos lares e locais de trabalho, nossas ruas e mentes. É uma violência sutil que se instala em nós e não a tratamos como estranha ou passageira. Mas com naturalidade. Ela é o preparo do terreno para o plantio da barbárie.
A violência ‘nossa’ de cada dia, antes de violentar os demais, violenta a nós mesmos porque nos tira a única coisa que é realmente ‘nossa’: a humanidade, a capacidade de conceber o bom, o belo, o justo e a possibilidade de sermos melhores. A violência ‘nossa’ de cada dia tem disfarces variados e está sempre à ‘nossa’ porta. Mas nunca haveremos de tratá-la como nossa. Ela sempre há de ser tratada como indesejável. Muito é o que podemos fazer contra a violência, a começar pela preservação dos valores imateriais que nos caracterizam como humanidade.
João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política pela UFF e juiz de Direito
Fonte: O Dia