* Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho
Na Declaração de Independência dos EUA, de 4 de julho de 1776, redigida basicamente por Thomas Jefferson, está inscrito como postulado que as 13 colônias rompiam com a metrópole porque o rei da Grã-Bretanha, entre outros motivos, tentava impor sua tirania fazendo os juízes dependentes da sua vontade. Ali se lançava a semente da garantia fundamental de todas as pessoas de receber julgamento por um tribunal independente e imparcial para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal, posteriormente reproduzida na Declaração Universal dos Direitos do Homem — aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia da ONU. A partir de então, a garantia se consolidou no mundo civilizado, integrando todas as constituições contemporâneas, ainda que muitas vezes agredida e violada por déspotas e ditadores de variados matizes e colorações políticas, supostamente afrontados pela sua atuação.
Tais considerações vêm a propósito de uma indagação que deve sensibilizar a todos, especialmente aos que militam na área jurídica e, ainda mais especificamente, nas lides judiciais: será a independência dos juízes um elemento ainda essencial ao adequado cumprimento de sua relevante função social? Ou, pelo contrário, nestes tempos de globalização em que vivemos, terá essa independência, antes atributo primordial de qualquer julgamento, sido engolfada tanto pela tsunami da jurisdição massiva representada pelas súmulas com efeito vinculante, recursos repetitivos, entre outros, quanto pela necessidade de atender metas e outras exigências indevidamente centralizadoras do CNJ?
Veja-se que este Conselho já se arvora até, parecendo atender à justa indignação popular contra todas as formas de corrupção, a inquirir alguns tribunais sobre suposto percentual insuficiente de condenações em matéria de improbidade administrativa. Isto, obviamente, sem conhecer o conteúdo dos processos e ignorando que na quase totalidade dos casos o Ministério Público não recorreu da absolvição.
Assim, joga para a plateia, e não é à toa que a ex-Corregedora do CNJ, Eliana Calmon, já se aposentou voluntariamente e surge como intrépida candidata ao Senado pela Bahia, sem um recatado período de quarentena e tendo utilizado a tribuna do Conselho para pavimentar sua pretensão.
Recentemente, o ministro Joaquim Barbosa, Presidente do STF e do CNJ, alçado à condição de celebridade nacional pela relatoria da AP 470 (mensalão), decreta a prisão de um dos condenados (Deputado João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara Federal), mas não assina o mandado antes de se retirar para um período de férias, permitindo-se ainda, lá de Paris, de criticar suposta omissão dos ministros Carmen Lúcia e Ricardo Lewandowski, que não o assinaram por considerar que a tarefa caberia ao relator e não a seus substitutos na presidência. Ora, qualquer pessoa razoavelmente informada sabe que o juiz que decreta a prisão de condenado deve, como ato de ofício e portanto como dever que não pode ser esquecido, assinar o mandado, cuja preparação imediata não apresenta qualquer dificuldade, daí não ser confortável a versão apresentada pelo relator de não havê-lo assinado pelo início de férias no dia seguinte.
Por outro lado, a crítica pública e emitida do exterior a seus colegas de corte, um deles Vice-Presidente, que agiram pela convicção de que a tarefa de assinar o mandado era do relator, atinge também a independência judicial dos criticados, sendo mais um episódio de pressão agravado por se dirigir a juízes do STF.
Bem se vê que a independência judicial pode ser afrontada da 1ª instância ao STF, devendo ser, como valor social e jurídico resguardado pela Constituição Federal, defendida, independentemente da origem das agressões, sejam internas ou externas ao Poder Judiciário, merecendo repulsa ainda maior quanto mais elevado o cargo ou posição jurídico-política do autor do atentado.
Mais importante, entretanto, é a verificação de que tais agressões à independência dos juízes debilitam o próprio estado democrático de direito e ferem de morte os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição, tentando fazer de juízes, cuja instituição, como qualquer outra, também apresenta suas máculas, burocratas de toga ou fantoches de um reino de faz-de-conta onde, mais do que os direitos individuais e coletivos, deve contar a vontade dos opressores.
Até porque a democracia não convive com a ideia da transformação dos juízes, por vocação institucional destinados a garantidores dos direitos fundamentais da pessoa humana, em insetos gigantescos como aquele em que o gênio inquietante de Franz Kafka transformou o caixeiro-viajante Gregor Samsa na obra prima A Metamorfose.
Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho é desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Fonte: ConJur