AMAERJ | 06 de maio de 2016 17:10

Revista FÓRUM: ‘Atacaram uma juíza no BEP!’

Para Daniela Barbosa, vencedora do Prêmio Faz Diferença, “magistratura é missão de vida”

Credito - Marcelo de Jesus

POR RAPHAEL GOMIDE E DIEGO CARVALHO

O comandante do Comando de Operações Especiais (COE) da Polícia Militar, coronel René Alonso, seguia na tarde em 1º de outubro de 2015 no carro funcional rumo ao Quartel-General da corporação, na Rua Evaristo da Veiga, quando recebeu um telefonema urgente em seu celular. Era o comandante-geral, coronel Alberto Pinheiro Neto, do outro lado da linha. A notícia pareceu grave. “Sim, senhor, estou voltando agora!”, afirmou. “Atacaram uma juíza no BEP (Batalhão Especial Prisional, em Benfica)! Vou voltar ao COE para mandar o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) lá”, afirmou.

Da pista central da Avenida Presidente Vargas, o sargento motorista imediatamente fez uma meia-volta e cruzou as pistas em sentido contrário, zona norte, em direção à Central do Brasil, onde deixou um carona. “Não atingiram diretamente a juíza, porém arranha a figura da autoridade. É um grande desgaste institucional. Na verdade, aquele presídio já deveria ter sido modificado”, diria mais tarde naquele dia o coronel René.

Quando chegou ao BEP para fazer vistoria, a juíza Daniela Barbosa Assumpção, da Vara de Execuções Penais (VEP), surpreendeu-se. Não era exatamente uma prisão, mas uma espécie de quartel militar de portas abertas, sem celas. Os presos circulavam livremente e tinham nos alojamentos geladeiras, televisões, videogames, celulares, churrasqueira e até uma bateria profissional. A magistrada determinou obras nas instalações, a retirada dos eletrodomésticos, e suspendeu temporariamente as visitas íntimas e de familiares aos 215 presos.

A medida acirrou os ânimos dos detentos. Quando Daniela retornou ao BEP em 1º de outubro para fiscalizar as mudanças, a notícia se espalhou rapidamente. Logo foi cercada por detentos, que se aproximavam de forma hostil. A escolta interveio, mas, em inferioridade numérica, passou a ser agredida. Daniela teve a blusa rasgada, perdeu os óculos e os sapatos e se viu obrigada a deixar o presídio. “Não podíamos reagir, eles estavam em número maior, gritavam e ofendiam os policiais da escolta. Em certo momento, tentaram nos atacar. Saímos graças ao trabalho eficiente dos PMs da escolta, que fizeram um círculo em minha volta. Alguns presos nos ajudaram até a saída”, conta a juíza.

Horas depois, voltou acompanhada do juiz Eduardo Oberg, titular da VEP, com o reforço do Bope, enviado por ordem de René Alonso, para encerrar a vistoria. O Tribunal de Justiça determinou a interdição do BEP e a transferência de todos os detentos. Orientada pela Diretoria-Geral de Segurança Institucional do TJ-RJ, ela deixou a VEP em janeiro, e conquistou o reconhecimento do público.

Por sua atuação firme, a juíza Daniela Barbosa recebeu, em 23 de março, o Prêmio Faz Diferença, do jornal O Globo, na categoria Rio, em votação popular. “Há 14 anos, faço apenas a minha obrigação. Quando você integra o Judiciário, não basta ser, você deve parecer. Integrar a magistratura é uma missão de vida, há que se empenhar com total entrega, comprometimento, lisura e imparcialidade. Há que se aplicar a lei a quem quer que seja, doa a quem doer, sem amor e sem rancor”, disse.

Juíza há 14 anos, Daniela estudou na EMERJ, e começou a carreira como serventuária do TJ-RJ, em uma Vara de Família, onde denunciou a chefe do cartório por receber propina de advogados para agilizar processos. Transferiu-se para a 36ª Vara Criminal, auxiliando a então juíza Kátia Jangutta. Após se tornar magistrada, atuou nas comarcas de Magé e Teresópolis, coordenou a propaganda eleitoral do TRE em 2014 e foi juíza na VEP.

Daniela já recebeu ameaças até pelo WhatsApp, mas diz que as tentativas de intimidação não interferem no trabalho. “Convivo com isso há muitos anos e não sinto tensão, não me afeta. Sou juíza criminal desde que ingressei na magistratura, é o que sei fazer de melhor, é o que gosto. Se posso fazer alguma diferença para a sociedade, nas questões de segurança, então tenho que continuar, tenho que fazer o meu papel.”

‘14.784 é o número de pessoas que dormiam no chão’

Além dela, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), foi homenageada como Personalidade 2015. O juiz federal Sergio Moro, responsável pela Operação Lava-Jato, fora o eleito na edição anterior. Hoje titular da 2ª Vara Criminal de Duque de Caxias, a Daniela se diz honrada com o reconhecimento, mas afirma que o prêmio é para todo o Judiciário.

“É curioso que, no período de um ano, três magistrados tenham sido agraciados. A sociedade está cansada da impunidade. Espera e confia na autoridade do Judiciário, espera que exerça sua função com firmeza e lisura. Na VEP, fiscalizamos o uso das tornozeleiras, o trabalho extramuros [benefício concedido ao interno do regime semi-aberto], o regime aberto e as garantias dos direitos de condições mínimas para os presos. Em sete meses na VEP, inspecionei mais de 200 unidades”, disse Daniela. “Descobrimos 25 locais de extramuros fantasmas e regredimos as penas de presos de alta periculosidade, que cumpriam trabalho extramuros em locais inexistentes, como subterfúgio para sair da cadeia.”

A juíza instituiu a fiscalização das tornozeleiras e um sistema de denúncias por e-mail. A lei tem de ser aplicada para punir e garantir direitos. “Instauramos procedimentos junto à Secretaria de Administração Penitenciária, porque unidades estavam em condições muito precárias e superlotadas. Fizemos um levantamento do déficit do sistema. Faltavam 14.784 colchões; esse não é o número apenas de colchões, 14.784 é o número de pessoas que dormiam no chão.”

A magistrada constatou que os presos não receberam, por anos, o repasse do pecúlio, parte do valor do salário do preso que trabalha depositado em juízo para receber quando libertado. “Solicitamos a investigação desses desvios. Avisamos aos presos para que conhecessem seus direitos e pudessem requerê-los, porque estavam sendo lesados.”