JOÃO BATISTA DAMASCENO
O artigo “A esquerda caviar não liga para Amarildo”, de Rodrigo Constantino, requentado e publicado no GLOBO, criticou o jantar beneficente realizado na casa da produtora Paula Lavigne, onde se arrecadou dinheiro para a aquisição de uma casa para a família de Amarildo. Foi dito que Amarildo é apenas um símbolo e se reclamou da falta de solidariedade aos policiais mortos em combate. Não se falou daqueles que ordenam a política de segurança militarizada e que pouco se importam se quem morre é policial, trabalhador ou traficante. A tônica do artigo foi o ataque a Paula, do grupo Procure Saber.
O jantar arrecadou recursos para a aquisição da casa e o custeio de pesquisa sobre os desaparecidos. Ano passado foram 5.900. O liberal que critica a liberdade de destinação de recursos próprios nega o próprio liberalismo. Amarildo é um símbolo da violência do Estado contra os excluídos. É a expressão da política implantada nas áreas militarizadas. E tem nome. Dos outros, pouco sabemos e queremos saber. Foi a mídia alternativa e parte da sociedade civil que impediram fosse Amarildo contabilizado como número, como os demais.
Quem participou do jantar não defende a quebra de vitrines de bancos, nem qualquer destruição. Mas também não pede prisões. Menos ainda porque os dirigentes dos bancos não pediram ao Estado a defesa dos seus vidros. A apuração do crime de dano se faz com o pedido do prejudicado e o liberalismo, por princípio, não há de pretender a tutela do Estado quando não reclamada. O chavão anticomunista, do tempo da Guerra Fria, que desorientou o artigo situa os participantes do jantar do “lado errado na batalha das ideias”, porque dele também participou quem defende os direitos à intimidade, à imagem e os decorrentes da personalidade. O liberalismo dos que concebem a existência de uma “verdade” escorrega no totalitarismo. O mercado editorial fala em liberdade, mas o que pretende é a apropriação da imagem e história de vida de pessoas notáveis, subtraindo do biografado o direito de uso da obra sobre ele. Trata-se de caso exemplar de transformação de pessoa em objeto ou mercadoria, sem o seu consentimento, com exclusão da possibilidade de uso da obra pelo próprio biografado a pretexto de propriedade imaterial do autor.
Temos precedente no Brasil! O liberalismo conseguiu fazer conviver no Brasil o discurso liberal e a escravidão. O romantismo dos discursos destoava da realidade da qual se falava. Todas as rebeliões dos liberais no Brasil visaram a não pagar imposto e nenhuma teve por fundamento a liberdade. Os liberais no século XIX usaram e abusaram do discurso sobre a liberdade, justificando suas condutas de transformar pessoas em mercadoria. No presente momento, os liberais defendem a apropriação de bens imateriais alheios, dentre os quais os decorrentes da personalidade, e para os que nada têm para ser apropriado a sujeição à tortura, morte ou desaparecimento. A dignidade da pessoa humana repudia a truculência e por isso “Somos todos Amarildo”.
João Batista Damasceno é juiz de Direito.
Fonte: O Globo