O juiz Aylton Cardoso Vasconcellos escreveu um artigo sobre a reclamação constitucional para prevalência da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na interpretação da legislação infraconstitucional nas causas submetidas aos Juizados Especiais Estaduais. O texto foi publicado na revista Direito em Movimento e na Revista de Direito do TJ-RJ, volume 93.
Segundo o juiz Aylton, “a reclamação constitucional é fruto de genuína construção jurisprudencial, tendo sido concebida mediante lenta evolução dos arestos do Supremo Tribunal Federal ao longo de mais de um século, até que, na atual Constituição, pela primeira vez, encontrou previsão expressa”, afirma no texto.
Veja a íntegra do artigo ou acesse o PDF do texto publicado na Direito em Movimento:
A RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL PARA PREVALÊNCIA DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NA INTERPRETAÇÃO DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL NAS CAUSAS SUBMETIDAS AOS JUIZADOS ESPECIAIS ESTADUAIS –INCONSTITUCIONALIDADE E ILEGALIDADE DO INCISO I, DO ARTIGO 2°., E DO ARTIGO 6°., AMBOS DA RESOLUÇÃO N°. 12/2009, DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
* Aylton Cardoso Vasconcellos
I – INTRODUÇÃO
A reclamação constitucional é fruto de genuína construção jurisprudencial, tendo sido concebida mediante lenta evolução dos arestos do Supremo Tribunal Federal ao longo de mais de um século, até que, na atual Constituição, pela primeira vez, encontrou previsão expressa.
Embora as origens remotas do instituto em foco possam ser encontradas também no Direito Romano, nas Ordenações Filipinas e na legislação de organização judiciária dos Estados, verifica-se que os mais relevantes argumentos em prol do cabimento da reclamação para assegurar o cumprimento das decisões da mais alta corte do país e preservar a sua competência foram encontrados na doutrina dos poderes implícitos, acolhida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, segundo a qual, sempre que uma competência geral é atribuída a determinado órgão também são outorgados os poderes necessários para o seu exercício. [1]
Referida doutrina assumiu significativa relevância a partir do julgamento do célebre caso “Mac Culloc x Maryland” e pode ser muito bem sintetizada nas palavras de Marshall “…. não há frase na Constituição que, como nos artigos da Confederação, exclua poderes incidentais e implícitos, o que requereria que cada competência fosse minuciosamente descrita….”. [2]
Bem estabelecida essa premissa, não é de se recusar a utilização dos meios necessários ao cumprimento da competência prevista na Constituição, ainda que em determinada hipótese estes não tenham sido objeto de enumeração exaustiva.
Com base nesses pressupostos, não somente a reclamação, mas também outros institutos de grande relevância jurídica, tais como a ação rescisória e o mandado de segurança, foram elaborados a partir da construção pretoriana levada a efeito pelo Supremo Tribunal Federal, ao longo do século XX.
Ainda no curso dessa evolução, a jurisprudência consolidada pela mais alta corte do país foi muito bem sintetizada no v. acórdão proferido por sua composição plenária, em julgamento realizado por maioria, em 25 de janeiro de 1952, nos autos da reclamação n°. 141, sendo Relator o eminente Ministro Rocha Lagoa, de cujo voto se transcreve o trecho seguinte:
“…. É fora de qualquer dúvida que a competência desta corte suprema é de ordem constitucional, pois vem expressamente definida na lei maior. Mas, a função precípua do Supremo Tribunal Federal é a de guardião da carta magna, de que é intérprete máximo. Na vigência do estatuto político de 1891, decidiu este pretório excelso não constituir inovação ou acréscimo de jurisdição o conhecer ele, por apelação, de coisas não expressamente mencionadas na Constituição, mas que por seu evidente caráter federal se deviam ter por incluídas na competência das justiças da União. Reconheceu assim implícita a competência federal para os crimes de moeda falsa, contrabando e peculato dos funcionários públicos federais (acórdão n. 350, de 21 de setembro de 1898). Por igual admitiu este magno colégio judiciário sua competência para tomar conhecimento de ação rescisória contra seus próprios julgados, embora não houvesse então texto de lei dispondo expressamente a respeito, (ac. n. 494 de 25 de outubro de 1899).
Proclamou-se destarte o princípio de que a competência não expressa dos tribunais federais pode ser ampliada por construção constitucional.
Na lição de Black, em seu Hand-book of American Constitucional Law §48, tudo o que for necessário para fazer efetiva alguma disposição constitucional, envolvendo proibição ou restrição ou a garantia de um poder, deve ser julgado implícito e entendido na própria disposição.
Ora, vão seria o poder, outorgado a este Supremo Tribunal Federal, de julgar em recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais e juízes se lhe não fora possível fazer prevalecer seus próprios pronunciamentos, acaso desrespeitados pelas justiças locais. Para tanto ele tem admitido ultimamente o uso do remédio heroico da Reclamação, logrando desse modo fazer cumprir suas próprias decisões.
Rejeitando assim a preliminar arguida, conheço da Reclamação. ….” [3]
Somente a partir de 1957 a reclamação passou a ter previsão no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, a qual, em 1967, acabou sendo legitimada pela nova Constituição então publicada, pois conferiu força de lei federal aos dispositivos do Regimento Interno que versavam sobre seus processos. Ainda assim, apenas com o advento da Constituição de 1988 é que a reclamação passou a ter previsão expressa no texto constitucional. [4]
Nesse sentido, o artigo 102, I, “l” e o artigo 105, I “f”, da Constituição de 1988, que regulam a competência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, contêm idêntica disposição que assegura às referidas cortes os poderes necessários para processar e julgar, originariamente, “a reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões”.
Durante a lenta evolução do instituto, ocorreram sérias divergências doutrinárias acerca da definição de sua natureza jurídica, ainda não pacificadas, já tendo sido qualificada como medida administrativa, incidente processual, recurso, sucedâneo recursal e ação propriamente dita. Atualmente, entretanto, consolidou-se o entendimento doutrinário que reconhece à reclamação natureza jurisdicional, uma vez que esta se revela capaz de introduzir alterações em decisões adotadas em processos judiciais, ao mesmo tempo em que se reconhece a formação da coisa julgada nas decisões proferidas em sede de reclamação. [5] Mais especificamente, é predominante a qualificação da reclamação como ação propriamente dita, como ensina Gilmar Ferreira Mendes:
“…. Tal entendimento justifica-se pelo fato de, por meio da reclamação, ser possível a provocação da jurisdição e a formulação de pedido de tutela jurisdicional, além de conter em seu bojo uma lide a ser solvida, decorrente do conflito entre aqueles que persistem na invasão de competência ou no desrespeito das decisões do Tribunal e, por outro lado, aqueles que pretendem ver preservada a competência e a eficácia das decisões exaradas pela Corte. ….” [6]
A partir do desenvolvimento dos chamados processos de índole objetiva para exercício do controle concentrado de constitucionalidade e, mais recentemente, a partir da instituição da Súmula Vinculante pela Emenda Constitucional n°. 45, de 2004, o uso da reclamação perante o Supremo Tribunal Federal tem se intensificado de forma marcante, pois se em 1990 foram propostas apenas 20 reclamações, em 2005 a distribuição alcançou 933 novos processos, [7] portanto, multiplicou-se em mais de 46 vezes num período de apenas quinze anos.
II – A RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL COMO MECANISMO DE PRESERVAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA NO ÂMBITO DOS JUIZADOS ESPECIAIS ESTADUAIS.
A evolução do instituto ganhou contornos ainda mais extensos do que jamais se havia cogitado, a partir de novo precedente do Supremo Tribunal Federal, estabelecido no julgamento realizado em 26/08/2009, nos autos dos embargos de declaração no recurso extraordinário n°. 571.572-8-BA, Relatora a eminente Ministra Ellen Gracie, cuja ementa a seguir se transcreve em parte:
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AUSÊNCIA DE OMISSÃO NO ACÓRDÃO EMBARGADO. JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. APLICAÇÃO ÀS CONTROVÉRSIAS SUBMETIDAS AOS JUIZADOS ESPECIAIS ESTADUAIS. RECLAMAÇÃO PARA O SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CABIMENTO EXCEPCIONAL ENQUANTO NÃO CRIADO, POR LEI FEDERAL, O ÓRGÃO UNIFORMIZADOR. 1. …. 2. Quanto ao pedido de aplicação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, observe-se que aquela egrégia Corte foi incumbida pela Carta Magna da missão de uniformizar a interpretação da legislação infraconstitucional, embora seja inadmissível a interposição de recurso especial contra as decisões proferidas pelas turmas recursais dos juizados especiais. 3. No âmbito federal, a Lei 10.259/2001 criou a Turma de Uniformização da Jurisprudência, que pode ser acionada quando a decisão da turma recursal contrariar a jurisprudência do STJ. É possível, ainda, a provocação dessa Corte Superior após o julgamento da matéria pela citada Turma de Uniformização. 4. Inexistência de órgão uniformizador no âmbito dos juizados estaduais, circunstância que inviabiliza a aplicação da jurisprudência do STJ. Risco de manutenção de decisões divergentes quanto à interpretação da legislação federal, gerando insegurança jurídica e uma prestação jurisdicional incompleta, em decorrência da inexistência de outro meio eficaz para resolvê-la. 5. Embargos declaratórios acolhidos apenas para declarar o cabimento, em caráter excepcional, da reclamação prevista no art. 105, I, f, da Constituição Federal, para fazer prevalecer, até a criação da turma de uniformização dos juizados especiais estaduais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça na interpretação da legislação infraconstitucional.”
O precedente acima citado constitui o foco principal do presente estudo.
Como se constata a partir do item 5 da ementa, reconheceu-se à reclamação aptidão para assegurar a prevalência não de uma decisão, mas da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, quando afrontada por julgamentos oriundos das turmas recursais dos juizados especiais estaduais.
Trata-se de inovação no cenário jurídico, uma vez que a propositura de reclamação para preservação de jurisprudência somente se tornou possível a partir da Emenda Constitucional n°. 45, de 2004, que acrescentou o artigo 103-A, §3°., da Constituição, o qual prevê o seu cabimento apenas na hipótese de inobservância de Súmula Vinculante editada pelo Supremo Tribunal Federal, portanto, em âmbito extremamente restrito.
Como a Constituição não prevê a possibilidade de edição de Súmulas Vinculantes pelo Superior Tribunal de Justiça, o cabimento de reclamação para preservação da sua jurisprudência, em um primeiro exame, parece conferir aos acórdãos proferidos em recursos especiais maior autoridade do que a que se reconhece aos julgamentos oriundos do próprio Supremo Tribunal Federal, nos autos dos recursos extraordinários submetidos à sua apreciação, na medida em que, se não for editada Súmula Vinculante a respeito de determinado tema, não se admitirá reclamação para prevalência da orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, ainda que veiculada por meio de Súmula sem caráter vinculante.
A inevitável perplexidade decorrente da constatação supra é provocada pela inexistência no direito brasileiro, em regra, de efeito vinculante da jurisprudência de qualquer tribunal, constituindo a Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal a única exceção admitida no sistema constitucional, a qual, ademais, em certa medida acaba por se confundir com os meios de controle concentrado de constitucionalidade já previstos no texto da Constituição anteriormente à sua instituição, daí porque, em tese, até mesmo nessa hipótese seria discutível a atribuição de caráter vinculante à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na medida em que este efeito decorre da decisão do colegiado que determina a aprovação da Súmula Vinculante, e não da jurisprudência em que repousa o seu embasamento.
Assim colocada a questão, será possível, em alguma medida, conciliar a construção jurisprudencial com o texto constitucional?
A resposta a essa indagação dependerá da correta compreensão da inovação empreendida pelo Supremo Tribunal Federal.
Ora, no precedente em análise procurou-se prover solução para a inexistência de mecanismos de uniformização da jurisprudência pertinente à legislação federal, enquanto não criado órgão com essa finalidade no âmbito dos juizados especiais, ante o não cabimento de recurso especial para impugnação de acórdãos proferidos pelas turmas recursais dos juizados especiais, conforme jurisprudência consolidada pela Súmula n°. 203 do Superior Tribunal de Justiça.
A grande preocupação da corte foi assegurar um mecanismo pelo qual a controvérsia sobre a legislação federal pudesse ser submetida ao Superior Tribunal de Justiça, reconhecendo o risco de verdadeira ameaça à unidade do direito federal. Tanto é assim que foi cogitada alternativamente a ampliação das hipóteses de cabimento de recurso especial, como se verifica do voto do Ministro Gilmar Mendes, proferido no julgamento em exame:
“…. Outra forma para a solução proposta pela Ministra Ellen Gracie, seria fazer uma revisão do próprio modelo, pelo menos em obter dictum, para admitir recurso especial contra essas decisões. Mas isso seria, na verdade, um regresso, pois a reclamação tem um caráter seletivo e permite ao STJ a preservação de sua competência enquanto órgão que uniformiza a interpretação do direito federal. ….”
Em outras palavras, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade de utilização da reclamação em lugar do recurso especial (por analogia), porém de forma mais restrita.
Portanto, na hipótese em análise, a reclamação assume a característica de verdadeiro recurso, quebrando-se a solidez do conceito doutrinário estabelecido ao longo do último século, porém, adequando-se o novo uso do instituto ao texto constitucional, pois se fosse compreendida em sua concepção clássica a reclamação não poderia se prestar à revisão pura e simples de decisões judiciais, pois isso significaria atribuir efeito vinculante às decisões do Superior Tribunal de Justiça. [8]
O caráter “seletivo” do cabimento da reclamação deve ser compreendido no sentido da relevância da questão federal em debate, evitando-se o congestionamento do Superior Tribunal de Justiça, mas não se limita a esse aspecto.
Com efeito, o artigo 105, III, da Constituição prevê o cabimento do recurso especial em três hipóteses distintas, quando nas causas decididas em única ou última instância pelos Tribunais Regionais Federais, Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
Todavia, o voto da eminente Relatora, acolhido pela maioria da composição plenária do Supremo Tribunal Federal deixou claro:
“…. Diante da inexistência de outro órgão que possa fazê-lo, o próprio Superior Tribunal de Justiça afastará a divergência com a sua jurisprudência, quando a decisão vier a ser proferida no âmbito dos juizados especiais estaduais. ….”
Como se vê, a única hipótese de cabimento desta reclamação é a divergência do julgamento proferido pela turma recursal com a jurisprudência do próprio Superior Tribunal de Justiça.
Restam afastadas de forma absoluta as hipóteses previstas nas alíneas “a” e “b” do artigo 105, III, da Constituição, e admitida apenas em parte a hipótese da alínea “c” do mesmo dispositivo constitucional, uma vez que não é suficiente o dissídio jurisprudencial com qualquer outro tribunal senão o próprio Superior Tribunal de Justiça.
Além disso, é importante frisar, não será qualquer divergência de arestos a legitimar o uso da reclamação, mas apenas aquela que se colocar em conflito com a jurisprudência consolidada da Corte Superior.
Nas exatas palavras da eminente Ministra Ellen Gracie, em manifestação no mesmo julgamento ora em análise:
“…. A solução proposta, Presidente, evidentemente é temporária, até que a omissão legislativa seja sanada e seja estabelecida esta turma uniformizadora dos juizados especiais. Mas, enquanto isso não ocorre, parece-me que o sistema permite a utilização da reclamação, porque o que estará fazendo o STJ senão resguardando autoridade de uma decisão sua. Jurisprudência consolidada, já sumulada ….” (grifos nossos).
A última parte do comentário, embora se referisse à situação específica do caso concreto em julgamento, deixa claro o pensamento que norteou o Supremo Tribunal Federal ao admitir o uso excepcional da reclamação: a divergência jurisprudencial qualificada, i.e., o conflito entre o julgamento das instâncias inferiores e a orientação sedimentada da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, usualmente comprovada pela edição de Súmula.
Assim é que, se ainda houver julgamentos conflitantes no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, se a jurisprudência for insegura, vacilante e sujeita a flutuações, ou mesmo apenas recente, desde que não sumulada, parece não ser a hipótese de se conhecer da reclamação, na forma concebida pelo Supremo Tribunal Federal, eis que o uso do instituto deve se restringir a situações de conflito jurisprudencial tão manifesto que se coloque em risco a unidade do direito federal infraconstitucional – o que não é possível cogitar se no âmbito da própria Corte Superior houver julgamento recente no mesmo sentido da decisão reclamada.
Os conceitos acima expostos certamente serão mais facilmente compreendidos com o estudo de duas hipóteses a seguir.
Em 2009 o Superior Tribunal de Justiça, editou a Súmula n°. 410, em que restou consolidada sua jurisprudência ao asseverar que “a prévia intimação pessoal do devedor constitui condição necessária para a cobrança de multa pelo descumprimento de obrigação de fazer ou não fazer”. Todavia, em julgamento realizado nos autos dos embargos de divergência em agravo n°. 857.758-RS, em 23/02/2011, a Segunda Seção do mesmo Tribunal superou o entendimento cristalizado no verbete sumular, sustentando que “…. A intimação do devedor acerca da imposição da multa do artigo 461, §4°., do CPC, para o caso de descumprimento da obrigação de fazer ou não fazer pode ser feita via advogado ….” Posteriormente, apesar do novo entendimento jurisprudencial então veiculado, a C. Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, em julgamento realizado em 16/10/2012, decidiu que “…. Nos termos da jurisprudência pacífica do STJ, no caso de imposição de multa diária (astreintes), o termo inicial para sua incidência é a data da intimação pessoal do devedor para o cumprimento da obrigação de fazer. Precedentes. ….”.
Nesse contexto, em que primeiramente é superado o verbete sumular (sem que, entretanto, tenha sido feito o seu cancelamento), em julgamento da Segunda Seção e, em julgamento posterior, em relativamente curto período, a Segunda Turma retoma a antiga orientação jurisprudencial, seria possível cogitar de jurisprudência consolidada, idônea a autorizar o uso excepcional da reclamação constitucional, na hipótese de um julgado de turma recursal perfilhar um dos dois entendimentos em conflito no âmbito da própria Corte Superior?
A solução negativa se impõe.
Com efeito, se ainda há dissídio jurisprudencial relevante no seio do Superior Tribunal de Justiça (ainda que anteriormente uma das soluções tenha sido objeto de súmula), não há que se falar em risco de quebra de unidade da interpretação do direito federal decorrente de julgados de turmas recursais, exatamente porque essa unidade de pensamento não chegou a se estabelecer de forma consistente na Corte de uniformização – ou se estabelecida, em determinado momento, acabou se desfazendo, posteriormente, passando a se apresentar com a nota da instabilidade.
Outra hipótese, em que também será afastada a possibilidade de a reclamação ser conhecida, ocorrerá caso não existam pronunciamentos anteriores do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema tratado nas instâncias inferiores, o que usualmente se verificará nas matérias inerentes ao rito próprio dos juizados especiais, que por sua natureza não são apreciadas por aquela Corte, ante o não cabimento de recurso especial contra julgamentos das turmas recursais. Por exemplo: imagine-se julgamento de turma recursal em que houver sido julgado deserto recurso inominado em razão da impossibilidade de concessão de prazo para complementação de preparo, por afastamento da aplicação analógica do §2°., do artigo 511 do Código de Processo Civil, ante os princípios especiais que regem o rito sumaríssimo dos juizados. Ora, o entendimento citado jamais poderá se colocar em conflito com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, pela singela razão de não ser possível àquele Tribunal, mesmo em tese, haver se pronunciado anteriormente sobre a questão controvertida, daí porque a reclamação merecerá juízo negativo de admissibilidade.
Como a reclamação constitucional não foi criada para servir de mecanismo de uniformização de jurisprudência, a Presidência do Superior Tribunal de Justiça, entendendo inaplicáveis as regras previstas no Regimento Interno, editou a Resolução n°. 12/2009, em que passou a regulamentar o novo instituto. [9]
Bem andou o artigo 1°. da norma, ao estabelecer o prazo de 15 (quinze) dias para apresentação da reclamação, contado da ciência pela parte da decisão impugnada, em evidente analogia ao prazo de interposição de recurso especial, confirmando-se a natureza jurídica da nova espécie de reclamação constitucional.
Ocorre que em outros dispositivos da mesma resolução o Superior Tribunal de Justiça parece ter exorbitado dos limites preconizados pelo Supremo Tribunal Federal quanto ao excepcional uso da reclamação na hipótese em análise.
Isso porque o inciso I, do artigo 2°. da Resolução n°. 12/2009 prevê a possibilidade de o Relator deferir liminar para suspender a tramitação dos processos nos quais tenha sido estabelecida a mesma controvérsia retratada na reclamação:
“…. Art. 2º. Admitida a reclamação, o relator:
I – poderá, de ofício ou a requerimento da parte, presentes a plausibilidade do direito invocado e o fundado receio de dano de difícil reparação, deferir medida liminar para suspender a tramitação dos processos nos quais tenha sido estabelecida a mesma controvérsia, oficiando aos presidentes dos tribunais de justiça e aos corregedores-gerais de justiça de cada estado membro e do Distrito Federal e Territórios, a fim de que comuniquem às turmas recursais a suspensão; ….”
Todavia, o artigo 543-C do Código de Processo Civil, que regula o processamento dos recursos repetitivos e que constitui o único fundamento legal cuja aplicação por analogia poderia em tese respaldar uma determinação de suspensão processual, refere-se especificamente à suspensão de recursos, e não de “processos”, conceito inequivocamente mais abrangente, inexistindo respaldo normativo mínimo para sua adoção na Resolução em foco, ante a possibilidade de atingir até mesmo feitos em tramitação em primeiro grau de jurisdição.
Por outro lado, a regulamentação legal inerente aos recursos repetitivos deve ser compreendida de forma sistemática, pois embora o §2°. do artigo 543-C do Código de Processo Civil preveja a possibilidade de suspensão dos recursos em tramitação nos tribunais enquanto pendente de análise o recurso especial representativo da controvérsia, o §7°. do mesmo dispositivo legal cuidou de estabelecer o procedimento a ser adotado quando for publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça que ponha fim ao dissídio jurisprudencial. E, nesse passo, a norma legal refere-se apenas aos “recursos especiais sobrestados na origem”, corroborando a norma estabelecida no caput, que regulamenta tão somente o processamento de recursos especiais.
Por essa razão, mesmo no âmbito do processo civil comum não há possibilidade de suspensão de recursos outros que não os próprios recursos especiais, que deveriam ter sido encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça e que aguardam na origem a uniformização de jurisprudência – entendimento, ademais, adotado pela Resolução n°. 8, de 07 de agosto de 2008, do Superior Tribunal de Justiça, a qual, em seu artigo 7°. estabelece que o procedimento dos recursos repetitivos aplica-se tão somente ao recurso especial e ao agravo de instrumento interposto contra decisão que não admitir recurso especial, deixando de prever sua adoção para qualquer outra modalidade recursal – daí porque carece de fundamento jurídico a determinação de suspensão de recursos inominados nos quais tenha se estabelecido controvérsia idêntica à da reclamação.
Nesse mesmo sentido decidiu a C. Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do agravo regimental nos embargos de declaração no recurso especial nº. 1270401-PR, em julgamento realizado em 27/11/2012, Relator o eminente Ministro Sidney Beneti, de cuja ementa se transcreve o trecho seguinte:
“…. 1.- A suspensão prevista na ‘Lei de Recursos Repetitivos’, somente se aplica aos recursos especiais que estejam em processamento nos Tribunais de Justiça ou nos Tribunais Regionais Federais. ….”
Por outro lado, não se pode perder de vista que as turmas recursais não são tribunais, mas órgãos revisores do próprio juizado, integrados por juízes em exercício no primeiro grau de jurisdição, na forma do §1º., do artigo 41, da Lei nº. 9.099, de 1995, cuidando-se, pois, de um juízo colegiado, em relação ao qual não é possível a imposição de suspensão de recursos, uma vez que a norma do artigo 543-C do Código de Processo Civil tem seu âmbito de incidência restrito aos tribunais estaduais e tribunais regionais federais. [10]
Cabe acrescentar que, como não é cabível a interposição de recurso especial contra julgados das turmas recursais e considerando-se que a reclamação constitucional é proposta diretamente perante o Superior Tribunal de Justiça, constata-se que, mesmo em tese, simplesmente não há recursos nas turmas recursais suscetíveis de suspensão sob o pálio da norma especial pertinente aos recursos repetitivos.
Aos argumentos anteriormente apresentados é relevante acrescentar a inutilidade da suspensão de recursos inominados na única hipótese de cabimento da reclamação constitucional ora em estudo. Isso porque a suspensão teria por objetivo assegurar que a controvérsia jurisprudencial fosse solucionada a partir de julgamento do Superior Tribunal de Justiça o qual, servindo de precedente, informaria os julgamentos subsequentes da turma recursal. Ocorre que a reclamação constitucional na hipótese em exame tem por requisito exatamente a prévia existência de jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça acerca do tema tratado em segundo grau de forma divergente, razão pela qual não há sentido em se esperar novo julgamento daquela Corte sobre o mesmo tema – a não ser que o Relator vislumbre a possibilidade de revisão do próprio entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça; não sendo assim, deve ser feita a imediata correção, individual, do julgamento divergente, uma vez que nem mesmo a decisão proferida na reclamação possui efeito vinculante em relação a outros recursos e, portanto, não tem o condão de prevenir outras reclamações (de índole recursal) com o mesmo fundamento.
A espera na hipótese em análise apenas retarda os julgamentos em segundo grau sem vantagem relevante para a solução da divergência jurisprudencial.
Nessa mesma linha de pensamento, caso o Relator entenda que o julgamento atacado na reclamação possa ensejar riscos de danos irreparáveis e, em primeiro exame, se coloque em conflito com a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, restará a alternativa de suspender a eficácia da própria decisão que foi objeto da reclamação, como consequência natural do poder geral de cautela que lhe é inerente – solução adotada, por exemplo, em v. Decisão monocrática proferida nos autos da reclamação n°. 5.161-PR, em 08/02/2011, pelo eminente Ministro Cesar Asfor Rocha.
Apesar disso, a norma contida no inciso I, do artigo 2°., da Resolução n°. 12/2009 tem sido utilizada como fundamentação para a suspensão de recursos inominados em tramitação nas turmas recursais, em evidente contradição com a regulamentação prevista no Código de Processo Civil, cuja aplicação por analogia seria a única forma de materializar em termos procedimentais a nova hipótese de cabimento da reclamação constitucional concebida pelo Supremo Tribunal Federal.
Depreende-se, por isso mesmo, o evidente vício de inconstitucionalidade material da referida norma regulamentar, pois, exorbitando dos limites objetivos traçados por normas de superior hierarquia, reconheceu ao Superior Tribunal de Justiça, mediante ato normativo de sua própria iniciativa e elaboração, poderes que somente por lei processual específica poderiam ter sido conferidos àquela Corte.
Outro as aspecto que não poderia passar sem realce é indefinição do prazo de suspensão no dispositivo em apreço. Ora, essa omissão não poderia conduzir à conclusão de inexistência de limites temporais para a suspensão dos feitos mencionados na decisão liminar. Nesse caso deverá ser observado por analogia o disposto no §5°., do artigo 265, do Código de Processo Civil, que estabelece o prazo máximo de um ano para a suspensão de um processo judicial, mormente à luz do princípio da razoável duração do processo – previsto no artigo 5º., LXXVIII, da Constituição – e, especificamente do princípio da celeridade processual – que informa o sistema dos juizados especiais (artigo 2°., da Lei n°. 9.099, de 1995) -, de modo que, se o julgamento da reclamação não ocorrer dentro desse prazo, as partes que tenham sido atingidas pela determinação de suspensão processual começam a sofrer coação ilegal.
Contudo, esses não são os únicos vícios constatados na Resolução n°. 12/2009.
É que o artigo 6°. da Resolução n°. 12/2009 estabelece que “…. As decisões proferidas pelo Relator são irrecorríveis. ….”.
Ora, essa norma encontra-se em conflito com a natureza colegiada das decisões do Tribunal, à luz do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, que prevê a possibilidade de interposição de agravo regimental contra as decisões proferidas pelo Relator, a ser apreciado pelo órgão do Tribunal ao qual compete o julgamento do pedido ou recurso, conforme se lê dos respectivos dispositivos regimentais:
“…. Art. 258. A parte que se considerar agravada por decisão do Presidente da Corte Especial, de Seção, de Turma ou de relator, poderá requerer, dentro de cinco dias, a apresentação do feito em mesa, para que a Corte Especial, a Seção ou a Turma sobre ela se pronuncie, confirmando-a ou reformando-a.
§ 1º O órgão do Tribunal competente para conhecer do agravo é o que seria competente para o julgamento do pedido ou recurso.
§ 2º Não cabe agravo regimental da decisão do relator que der provimento a agravo de instrumento, para determinar a subida de recurso não admitido.
Art. 259. O agravo regimental será submetido ao prolator da decisão, que poderá reconsiderá-la ou submeter o agravo ao julgamento da Corte Especial, da Seção ou da Turma, conforme o caso, computando-se também o seu voto.
Parágrafo único. Se a decisão agravada for do Presidente da Corte Especial ou da Seção, o julgamento será presidido por seu substituto, que votará no caso de empate. ….”
Atente-se que a única hipótese de irrecorribilidade acolhida pelo Regimento Interno é a decisão do Relator que der provimento a agravo de instrumento que determinar a subida de recurso não admitido – o qual, portanto, de todo modo será submetido ao julgamento do colegiado.
Isso ocorre porque o Relator profere decisões monocráticas em nome do colegiado de que é integrante, não sendo possível subtrair aos demais membros do mesmo órgão a possibilidade de rever tais decisões, se com elas não se conformar a parte agravada.
É importante frisar que eventual derrogação da norma regimental demandaria a edição de Emenda Regimental, observando-se o rito previsto nos artigos 332 a 335 do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, que exige parecer prévio da Comissão de Regimento e voto favorável de dois terços dos membros do Tribunal.
Todavia, a Resolução n°. 12/2009 foi editada com fundamento no artigo 21, inciso XX, do Regimento Interno, que permite ao Presidente do Superior Tribunal de Justiça a edição de atos normativos para regulamentar deliberações do Plenário, da Corte Especial ou do Conselho de Administração.
A inconstitucionalidade formal consiste na impossibilidade de derrogação de disposição do Regimento Interno por ato do Presidente do Superior Tribunal de Justiça, ante a inobservância do rito especial para edição de emendas regimentais, que prevê não somente quórum qualificado, mas também prévio parecer da Comissão de Regimento.
Resta evidente que o conflito aparente de normas em foco deve se resolver pela prevalência da norma regimental sobre aquela estabelecida pela Resolução n°. 12/2009.
De qualquer modo, caso não admitido o agravo, restaria à parte prejudicada a alternativa de propor mandado de segurança contra a decisão proferida pelo Relator;[11] porém, trata-se de solução muito mais onerosa para as partes envolvidas e para a própria administração da Justiça, vulgarizando o uso do writ, em amesquinhamento de sua dignidade constitucional.
A questão da recorribilidade das decisões do Relator possui especial relevo, na medida em que eventuais determinações de suspensão de recursos e “processos” podem se revestir de efeitos extremamente gravosos não somente para as partes envolvidas na reclamação em que proferida tal decisão, mas também atingir a esfera jurídica de terceiros estranhos àquela específica relação processual e que possuem interesse e legitimidade para impugnar, perante o colegiado, a decisão do Relator que lhes prejudique.
IV – CONCLUSÃO
A partir do julgamento dos embargos de declaração no recurso extraordinário n°. 571.572-8-BA, pelo Supremo Tribunal Federal, tornou-se cabível a propositura de reclamação constitucional para preservação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça quando contrariada por julgamento de turma recursal dos juizados especiais estaduais, assumindo o instituto processual, nesse caso, a natureza de recurso análogo ao recurso especial, cujo cabimento, entretanto, é restrito à hipótese de conflito entre o entendimento jurídico consagrado no julgamento objeto da reclamação e a orientação adotada por jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, afastadas as demais hipóteses previstas no artigo 105, III, da Constituição da República.
Não obstante o cabimento da reclamação constitucional, conclui-se pela inconstitucionalidade material do inciso I, do artigo 2°. e a inconstitucionalidade formal do artigo 6°., ambos da Resolução n°. 12/2009, editada pela Presidência do Superior Tribunal de Justiça, os quais preveem, respectivamente, a possibilidade de suspensão de outros processos em curso nos quais tenha se estabelecido idêntica controvérsia e a irrecorribilidade das decisões proferidas pelo Relator da reclamação.
[1] PACHECO, José da Silva. A “Reclamação” no STF e no STJ de acordo com a Nova Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. V. 6. P. 19.
[2] Apud Ibid.
[3] A transcrição observou as regras ortográficas atualmente em vigor, adaptando-se a grafia original no que com estas conflitava. Não obstante se tratar de acórdão antigo, seu inteiro teor está disponível no sítio www.stf.jus.br, digitalizado.
[4] MENDES, Gilmar F. A Reclamação Constitucional no Supremo Tribunal Federal: Algumas Notas. Direito Público, 2006. n°. 12. P. 23.
[5] Ibid. p. 24.
[6] Ibid. p. 25.
[7] Ibid. p. 25.
[8] Vide CORTEZ, Cláudia Helena Poggio. O cabimento de Reclamação Constitucional no Âmbito dos Juizados Especiais Estaduais. Revista de Processo, 2010. V. 188. P. 253. No artigo citado sustenta-se que “…. o entendimento firmado pelo STF dá força vinculante às decisões do STJ, pelo menos com relação às decisões proferidas nos juizados especiais estaduais. ….”.
[9] Ibid.
[10] Esse entendimento ficou mais claramente expresso no agravo regimental no agravo em recurso especial nº. 199103-PR, julgamento realizado em 23/10/2012, pela C. Terceira Turma, Relator o eminente Ministro Sidney Beneti, de cuja ementa se transcreve o trecho seguinte: “....A suspensão prevista na "lei de recursos repetitivos", destina-se principalmente aos Recursos Especiais que estejam em processamento nos Tribunais de Justiça ou nos Tribunais Regionais Federais e Agravos deles derivados, podendo ser o sobrestamento determinado pelos Juízos, ao prudente critério, mas não lhes podendo ser imposto. ....” (grifo nosso).
[11] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 11ª. Ed. p. 633. Comentário ao artigo 549 do Código de Processo Civil.
* Aylton Cardoso Vasconcellos é mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, juiz de Direito do Estado do Rio de Janeiro, membro Efetivo da 5ª. Turma Recursal Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e ex-Procurador da Fazenda Nacional.
Fonte: Assessoria de Imprensa da Amaerj