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O corregedor do CNJ é uma espécie de xerife encarregado de investigar irregularidades praticadas por juízes e tribunais. No cargo há sete meses, Luis Felipe Salomão conduz atualmente cerca de 2.800 apurações dessa natureza, a mais rumorosa delas a que resultou recentemente no afastamento de Marcelo Bretas, magistrado responsável pela Operação Lava-Jato no Rio de Janeiro.
Essa é a parte mais visível do trabalho. Há outras menos visíveis, mas não menos importantes, que incluem a busca de soluções para problemas como a morosidade de processos e ações de abrangência social.
O órgão vai coordenar, em breve, uma força-tarefa que visa a dar cidadania a cerca de três milhões de brasileiros que beiram a invisibilidade por não terem sequer o registro do próprio nascimento — a maioria é de moradores de rua. Juiz do Superior Tribunal de Justiça (STJ) há catorze anos, o ministro diz que os magistrados não podem ser responsabilizados pela impunidade no Brasil, critica os colegas que se comportam como vingadores e afirma que, se não fosse a ação enérgica do Judiciário, a democracia brasileira teria sido sufocada.
A seguir os principais trechos da entrevista.
Por que o cidadão comum tem a sensação de que a impunidade é a regra no país, especialmente quando se trata de casos envolvendo poderosos?
No Conselho Nacional de Justiça temos metas para julgamentos de processos que envolvem casos de corrupção. Mas, ao contrário do que pensa o senso comum, o juiz não pode ter compromisso com um resultado predeterminado, com a punição de quem está sendo acusado. O compromisso de todo e qualquer juiz é julgar de forma célere, resguardar o direito de defesa e aplicar a lei no caso concreto. O papel do Judiciário não é o de ser o paladino no combate à corrupção.
Se existe corrupção e não há corruptos presos, algo está errado, certo?
Não estou adotando uma postura defensiva, mas o sistema criminal no Brasil não é composto só pelo juiz. Ele envolve delegado, Ministério Público, estrutura de apuração, perícia. Reconheço que nosso sistema criminal está longe de ser o ideal, mas a sensação de impunidade que recai no colo do Judiciário não é responsabilidade exclusiva dele. É preciso investir em sistemas de inteligência, troca de informações. Como juiz, estou aqui para analisar as provas que me são trazidas. Claro que não sou uma samambaia, mas, sob o risco de perder a isenção que todo magistrado deve ter, não posso ser um vingador. Juiz não é vingador.
Mesmo em casos notórios em que políticos confessaram seus crimes ou foram apanhados em flagrante, poucos acabaram de fato penalizados. Varas específicas para julgar casos assim não minimizariam essa distorção?
Com quase 35 anos de experiência no Judiciário, acho que a especialização na área criminal gera deformações. Varas especializadas com temas muito midiáticos levam a uma exposição que não combina com a atividade de juiz. Muitos magistrados acabam misturando a atividade com política, se extasiam com reconhecimento, acham que vão resolver todos os problemas do Brasil, extrapolam, abandonam a ideia de imparcialidade, e vai tudo por água abaixo.
O senhor está se referindo à Operação Lava-Jato?
A Lava-Jato se perdeu quando os juízes confundiram a função deles com uma atividade política e começaram a se expor demais, se acharem paladinos. Na Corregedoria, por exemplo, está sendo apurado no âmbito administrativo o caso do magistrado Marcelo Bretas, responsável pela operação no Rio. O processo dele está sob sigilo, mas o Plenário do CNJ reconheceu que ele ultrapassou a linha não só pela mistura da atividade judicial com a política, mas por sua própria conduta, incompatível com o que se deve esperar de um juiz. Recentemente, recebemos reclamações disciplinares também contra o juiz Eduardo Appio, o responsável pela Lava-Jato no Paraná. Vamos examinar as condutas dele.
O senador Sergio Moro está nesse rol de magistrados que misturaram a magistratura com a política?
Sim. Ele é um exemplo clássico de utilização da toga com finalidade política. Essa suspeição foi reconhecida pelo Supremo. O fato de o juiz deixar a magistratura para trabalhar no Executivo e depois disputar uma eleição parlamentar, por si só, comprova essa mistura. Por isso, defendo o cumprimento de uma quarentena para que magistrados possam entrar na política após deixarem o cargo de juiz.
A Polícia Federal descobriu um plano para assassinar Moro. Como o senhor viu a declaração do presidente Lula de que isso seria uma armação?
Nesse caso específico, a Polícia Federal agiu com muita competência e provou que o trabalho com inteligência é a melhor solução para enfrentar o crime organizado. Descobrir o plano e agir contra seus autores também foi um sinal de vitalidade da corporação e uma demonstração clara da importância de atuar como uma polícia republicana. Foi uma ação policial muito bem-feita.
A maior pena para um juiz pego em irregularidades é a aposentadoria compulsória. Ele vai para casa e continua recebendo salário, mesmo sem trabalhar. Isso não está mais para um prêmio?
Há uma percepção errada do que seja a aposentadoria compulsória. Ela não é um prêmio para o juiz nem significa a manutenção do salário que ele recebia quando estava no cargo. Com a punição, o magistrado perde os vencimentos, mas, como contribuiu para a Previdência Social, tem direito a receber o que recolheu. Um criminoso não perde a aposentadoria do INSS porque cometeu um crime. O que qualquer um pagou até o dia da punição entra no cálculo da aposentadoria. Isso vale para todo cidadão, e não só para os magistrados.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes pode ser colocado na categoria de juiz herói ou vingador?
Como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, se ele não tivesse tido a firmeza que teve, as eleições talvez nem tivessem acontecido. Eu, na condição de juiz eleitoral, acompanhei parte do processo instaurado contra o ex-presidente Bolsonaro. Criamos precedentes importantes para a democracia, como a tese de que atacar a urna eletrônica, o sistema de votação ou o sistema eleitoral gera inelegibilidade e cassação. Foi preciso muita coragem do ministro Alexandre e do TSE para poder levar à frente o processo eleitoral de 2022. As instituições democráticas e o Judiciário deram uma prova muito robusta de que atuam efetivamente para o estado democrático de direito.
Juristas questionam muitas dessas decisões. Falam, inclusive, em abusos.
As decisões do ministro Alexandre de Moraes foram confirmadas pelo plenário. O papel dele foi muito relevante na defesa da democracia. Dele, do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal. Se não fosse a independência, a autonomia e a firmeza do Judiciário, estaríamos numa situação muito pior. Não sei exatamente onde, mas certamente muito pior.
O senhor se alinha com a tese de que a democracia brasileira de fato correu risco?
Acho que não é uma tese, são fatos concretos que apontam nessa direção. Se não fosse o Judiciário independente, a imprensa livre e a reação da sociedade, que percebeu o avanço do sistema autoritário, não tenho dúvida de que algo terrível poderia ter acontecido. O êxtase dessa marcha foi no dia 8 de janeiro. Cabe agora ao TSE analisar a questão da inelegibilidade do ex-presidente Bolsonaro, e no campo criminal fatos serão apurados.
É aceitável que juízes recebam por palestras ou eventos patrocinados por empresários que podem no futuro ter processos nas mãos desses mesmos magistrados?
O juiz não pode ser impedido de realizar uma atividade docente. A maioria desses eventos é feita por entidades ligadas à magistratura e é realizada para debates relevantes para o funcionamento do Poder Judiciário. O que é ruim — e ilegal — é a confusão entre o interesse privado e a atividade pública. A monetização de palestras, a meu ver, é um problema ético que cada juiz avalia do seu ponto de vista. É esperado desse magistrado que se declare suspeito se vier a deparar com um processo desse contratante. Mas cada caso é um caso.
Qual deve ser o limite de participação de magistrados em redes sociais?
A lei impede que haja politização e que o juiz externe qualquer opinião com conotação política para que não se quebre a imparcialidade de sua atuação no julgamento. Isso vale da mesma forma para as redes sociais. Em alguns casos com os quais nos deparamos no CNJ, a atuação de magistrados nas redes era tão intensa que transbordava para a realização de cursos em que eles ganhavam dinheiro. Também encontramos episódios em que o sujeito perdia o tempo dele na internet e não cumpria com a obrigação de julgar processos.
O Congresso discute a possibilidade de criar mandatos para os juízes do STF e alterar a forma como eles devem ser escolhidos. O senhor vê necessidade de mudanças?
O mundo todo vem debatendo o tempo de permanência e a melhor forma de escolher um cidadão que vai dizer o que é ou não é constitucional. São discussões que visam a conferir legitimidade para o indicado a uma cadeira de ministro do Supremo. É preciso, porém, analisar cuidadosamente os prós e os contras de cada uma dessas propostas. O que não me parece razoável é simplesmente instituir mandatos, alterar a idade de ingresso e modificar o próprio funcionamento do sistema sem que haja um consenso com o Supremo.
Representatividade é um requisito a ser observado para a escolha de futuros ministros do STF?
Como requisito constitucional, não. O tema da representatividade está muito presente hoje, mas isso não pode tolher a escolha do presidente da República. O critério constitucional só estabelece que o indicado tem de ter o mínimo de 35 anos, notório saber jurídico e reputação ilibada. A representatividade até pode ser um elemento a ser considerado, mas não pode ser vinculativo.
Quem diz isso é o juiz do STJ ou o candidato a ministro do Supremo?
O presidente da República detém legitimidade e competência para fazer as melhores indicações para o Supremo Tribunal Federal, que depois terão seus nomes sabatinados no Senado da República.
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