A história não pode ser modificada, mas a arte cumpriu seu papel de refletir e provocar a sociedade atual, encenando o destino simbólico de um herói nacional. No feriado do Mártir da Independência, o TJ-RJ ‘desenforcou’ e ‘desesquartejou’ Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. O espetáculo “O Desenforcamento do Tiradentes: Justiça ainda que tardia” foi apresentado no Salão Histórico do 1º Tribunal do Júri, no Antigo Palácio da Justiça, e contou com a participação dos desembargadores Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, Cláudio dell’Orto, Cristina Gaulia e Siro Darlan.
A peça encenou um novo julgamento do Tiradentes (vivido pelo ator Milton Gonçalves), condenado à morte em 1792 pelo crime de lesa-majestade. Ao final do espetáculo, o ator não escondeu a emoção por ter interpretado o herói nacional, agora com um final feliz. “Eu não paro de chorar. Foi uma emoção única viver esse momento e esse herói nacional. Eu carrego um enorme orgulho de ser brasileiro, de ser um apaixonado pela democracia”, disse Milton.
O presidente do TJ-RJ, desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, atuou na peça e fez a leitura da decisão dos jurados. Para o magistrado, o desenforcamento surge num momento importante para o País. “A população está carente de heróis de verdade. São muitos escândalos que deixam a sociedade com baixa autoestima, que constrangem a todos. É importante que a população resgate a história do Tiradentes”, afirmou.
O idealizador do ‘desenforcamento’ foi o diretor-geral de Comunicação e de Difusão do Conhecimento, Joel Rufino dos Santos. Ele considerou que o evento superou as expectativas. “Vieram pais de família, crianças, pessoas de todas as idades. O espetáculo transcorreu o limite da emoção e da racionalidade. Foi uma festa muito bonita”, disse.
Nos papéis de acusação e defesa, os criminalistas Jorge Vacite Filho e Técio Lins e Silva, respectivamente, duelaram para selar o destino do alferes de Minas Gerais. No entanto, todos sabiam que o final seria feliz. O texto de Ricardo Leite Lopes foi uma adaptação dos Autos da Devassa, processo judicial movido pela Coroa Portuguesa contra Tiradentes e os demais inconfidentes.
“Este homem quer ser herói. Após uma vida inteira de inglórias derrotas, quer tornar sua vida heroica. É um Dom Quixote que está preso por atacar moinhos. Sua luta não existiu, seu crime não existiu. E sua morte só existirá se deixarmos que aconteça. Por isso a defesa, que não pode negar a autoria em função da confissão, pede clemência”, clama a defesa no texto da peça.
E a clemência foi concedida. O corpo de jurados entendeu por unanimidade que o alferes deveria ser absolvido. “Hoje podemos homenagear Tiradentes, tratá-lo como herói, na esperança de estarmos fazendo justiça. Justiça ainda que tardia. Mas isso é apenas um consolo, para que tenhamos uma consciência tranquila e a ilusão de que em nossa sociedade altamente civilizada, a justiça sempre triunfa”, diz um trecho da peça. A fala é do juiz, interpretado pelo desembargador Claudio dell’Orto.
Mais de 250 pessoas assistiram à peça, que foi retransmitida em dois telões instalados no Antigo Palácio da Justiça. A assessoria de comunicação também transmitiu o evento ao vivo pela internet, uma iniciativa inédita no TJ-RJ. Inicialmente, 180 senhas foram distribuídas para o público. Em seguida, mais pessoas foram acomodadas para que pudessem assistir ao desenforcamento com conforto e segurança.
O espetáculo foi organizado pelo Centro Cultural do Poder Judiciário (CCPJ-Rio). A direção foi de Silvia Monte. A desembargadora Cristina Gaulia fez o papel da Liberdade (narradora da peça); os atores Antonio Alves e Eduardo Diaz interpretaram, respectivamente Joaquim Silvério dos Reis, que delatou o movimento dos inconfidentes, e um oficial de Justiça.
Personalidades e autoridades
O julgamento teatralizado do ‘desenforcamento’ do Tiradentes atraiu uma plateia bem diversificada. Além das muitas famílias que aproveitaram o feriado para assistir ao espetáculo, personalidades também compareceram ao evento. Quem aproveitou para se sentar logo na primeira fileira foi o ator Paulo Betti. Antes do início da peça, ele já mostrava grande expectativa para conhecer melhor o Tribunal em um momento importante. “Eu fico muito curioso. O Tribunal tem um pouco de teatro também, de teatralidade. Eu nunca havia visto uma sessão no Tribunal do Júri, e hoje é uma oportunidade para acompanhar a simulação de uma sessão histórica”, disse.
Para a representante da ONU Margarida Pressburger, que também fez parte do teatro como jurada, a história do Brasil interessa a todos. “Nós vemos aqui pessoas de todas as camadas sociais e de todas as idades. Isso mostra que a história do nosso país interessa sim, e eventos como este têm que se repetir”, diz. Margarida ainda classificou como árdua a sua missão no Tribunal do Júri. “E quem sou eu para julgar Tiradentes?!”, brincou.
Nomes importantes do Poder Judiciário não só estiveram presentes, como também participaram do ‘desenforcamento’. Foi o caso do desembargador Siro Darlan, um dos jurados no plenário. Para o magistrado, o desenforcamento de Tiradentes é bastante simbólico. “É importante conhecer a história e o outro lado da história, mostrar que nós da Justiça nem sempre acertamos. Nós condenamos Tiradentes e continuamos a condenar muita gente inocente. Que esse desenforcamento seja também o desenforcamento de todos aqueles que sofreram algum tipo de injustiça”, falou o desembargador.
O ex-secretário de Justiça e de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, João Luiz Pinaud, foi outro que esteve presente no momento solene. De acordo com ele, o evento é uma conquista. “Isso tudo tem muito significado. É o momento de desenvolvimento de uma consciência histórica”, afirmou.
Afonsinho, médico e ex-jogador de futebol nas décadas de 1960 e 1970, atuando por grandes clubes do Brasil como Botafogo, Flamengo e Atlético Mineiro, destacou a importância da comemoração no Dia do Tiradentes. Para ele, que ficou conhecido por sua luta pelos direitos dos atletas enquanto jogador, não é só a homenagem a Tiradentes o ponto principal do evento. “O mais importante é pensar no papel de Tiradentes para os brasileiros, e não só homenagear, mas deixar claro para todos a noção de justiça, acima de tudo. Esse público é uma mostra do poder de mobilização tão necessário para o povo”, diz Afonsinho.
Cortejo do ‘desenforcamento’ reúne 600 pessoas
Caía a tarde no Largo da Carioca, quando os cerca de 600 foliões quebraram o silêncio do feriado nacional de 21 de abril, em plena Avenida Rio Branco, no Centro da cidade do Rio de Janeiro. O cortejo que simbolicamente desenforcou o Tiradentes hoje à tarde foi uma espécie de grito de carnaval pela cidadania, que atraiu pessoas de todos os tipos e todos os cantos da cidade. O samba “Salve, salve Tiradentes”, de Gabriel Moura, puxado pela diretoria do Bloco das Carmelitas, de Santa Teresa, uniu de professores a magistrados, passando por servidores do Tribunal de Justiça e jornalistas.
O cortejo, que durou cerca de uma hora e meia, partiu do antigo Palácio da Justiça, na Rua Dom Manuel, e seguiu até a Praça Tiradentes, passando pelas ruas da Assembleia e da Carioca. Em frente ao Largo da Carioca, o clima de carnaval – e os passinhos de funk – dominaram os participantes que fizeram uma roda para aplaudirem a evolução de passistas infantis, como Neucina Regina, de oito anos, e Wellington, de dez. As crianças acompanhavam o grupo Chocobim, de Saracuruna, em Caxias, na Baixada Fluminense. A diretora do grupo é Maria do Carmo, a Maria Chocolate, que foi convidada para ser uma das juradas no julgamento do Tiradentes.
“Ficamos muito felizes de participar deste momento histórico, em que a Justiça abriu as portas para o povo a fim de absolver Tiradentes. Acreditamos que a Justiça pode fazer ainda mais, indo ao encontro do povo na periferia”, defendeu Maria Chocolate.
Com estandartes com palavras de ordem como “Direitos iguais”, “Soberania” e “Educação para todos”, o cortejo de Tiradentes comprovou que o samba pode servir à cidadania. A jornalista Amélia Gonzalez, que caiu no samba, disse que o carnaval em torno do desenforcamento do Tiradentes serviu também para estimular o imaginário popular em torno do personagem histórico. Um boneco de mais de 3 metros de altura, representando Tiradentes, foi uma das atrações. O evento tirou de casa quem está habituado a passar o feriado de Tiradentes no sofá.
“Vi na televisão e convidei meus amigos para acompanhar o cortejo”, contou a assistente administrativa Isabel Cristina Gomes, acompanhada da amiga Cláudia Duarte, de Niterói. A festa teve a participação também de serventuários da Justiça, como Amanda Viegas: “Temos que aproveitar essa festa cívica e esperar que se repita no ano que vem”, disse Amanda, que levou um grupo animado.
Com a família, o desembargador Fernando Foch, presidente do Fórum Permanente de Liberdade de Expressão, estava emocionado com o cortejo: “Essa festa não tem precedentes na história do Judiciário brasileiro. O Tribunal veio para a rua, abraçou o povo e também foi abraçado. Foi um grande espetáculo de manifestação cívica”, afirmou Foch, presidente do Fórum Permanente de Direito à Informação e de Política de Comunicação Social do Poder Judiciário.
Fonte: Amaerj com informações do TJ-RJ | Fotos: Brunno Dantas