Notícias | 27 de abril de 2012 15:52

Supremo decide que cotas raciais são constitucionais

Políticas de ações afirmativas baseadas em critérios étnicos para promover maior acesso de pessoas negras aos bancos de universidades públicas são constitucionais e necessárias para corrigir distorções culturais históricas existentes no Brasil. Essa foi a decisão tomada nesta quinta-feira (26/4), por unanimidade, pelo Supremo Tribunal Federal.

Os outros nove ministros presentes à sessão — o ministro Dias Toffoli se declarou impedido porque atuou na causa quando era advogado-geral da União — acompanharam o relator, ministro Ricardo Lewandowski. Em seu voto, Lewandowski ressaltou que o sistema de cotas tem de ter caráter transitório. Ou seja, durar o tempo necessário para que distorções sejam corrigidas. Depois, devem acabar.

“Trata-se de uma medida temporária, tomada a serviço da própria igualdade. As políticas de ação afirmativa não podem se tornar benesses permanentes, e nem é isso que o movimento negro quer”, disse o relator. Para ele, não há dúvidas sobre a constitucionalidade de políticas de ação afirmativa que tenham como objetivo corrigir desigualdades sociais, inclusive aquelas baseadas na cor da pele. De acordo com o ministro, “se a raça foi utilizada para construir hierarquias, deverá também ser usada para desconstruí-las”.

Nesta quinta, os ministros deram continuidade ao julgamento interrompido na quarta-feira (25/4), quando apenas Lewandowski havia votado. Primeiro ministro a votar depois do relator, Luiz Fux foi interrompido pela manifestação de um índio em plenário, que reclamou do fato de os ministros se referirem aos negros e não citarem os índios. Depois de o presidente, Ayres Britto, pedir por algumas vezes silêncio em plenário, sem sucesso, a sessão foi suspensa para que o homem fosse retirado do plenário. O índio disse chamar-se Araju Sepeti e ser da etnia Guarani.

Com a retirada o homem do plenário, o julgamento continuou com o voto de Fux. O ministro afirmou que “a construção de uma sociedade justa e solidária impõe a toda coletividade a reparação de danos pretéritos perpetrados por nossos antepassados adimplindo obrigações jurídicas”. De acordo com Fux, uma coisa é vedar a discriminação, outra é implementar políticas que levem à integração social dos negros. Para ele, raça pode ser considerada como critério para o acesso à universidade sem que a Constituição seja ferida por isso.

A ministra Rosa Weber disse que a raça ainda torna parcela importante da população brasileira invisível e segregada. De acordo com ela, a solução da questão deveria partir da seguinte pergunta: Os negros, considerados pretos e pardos, apresentam uma condição social ou histórica específica que os afastam das mesmas oportunidades que têm os indivíduos tidos por brancos?

Para a ministra, se a resposta for positiva, é legítima a intervenção do Estado para corrigir as distorções. E a resposta é positiva. “Se os negros não chegam à universidade, por óbvio não compartilham com igualdade das mesmas chances dos brancos”, afirmou. “Não parece razoável reduzir a desigualdade social brasileira ao critério econômico”, disse a ministra.

Princípio da igualdade

Ao votar, a ministra Cármen Lúcia disse ser uma responsabilidade social e estatal fazer valer o princípio da igualdade insculpido na Constituição Federal. “O princípio da igualdade não é apenas um aviso, um conselho, mas uma norma que deve ser cumprida”, afirmou.

“As ações afirmativas não são as melhores opções. A melhor opção é ter uma sociedade na qual todos sejam livres para serem o que quiserem ser. As cotas são uma etapa, um processo, uma necessidade em uma sociedade onde isso não aconteceu naturalmente”, disse Cármen Lúcia.

De acordo com o ministro Joaquim Barbosa, que votou em seguida, ações afirmativas têm como objetivo neutralizar os efeitos perversos da discriminação racial, de gênero, de origem, de idade e de condição física. O ministro lembrou que as ações afirmativas podem ser, e em alguns casos já são, empreendidas também pelo setor privado e pelo próprio Poder Judiciário, nos casos de grave discriminação.

“A discriminação está tão enraizada na sociedade brasileira que as pessoas nem percebem. Ela se torna normal”, afirmou o ministro. De acordo com Joaquim Barbosa, estudioso de ações afirmativas com livros sobre o tema, “essas medidas visam combater não somente manifestações flagrantes de discriminação, mas a discriminação de fato”. O ministro disse também que é natural que ações afirmativas “atraiam resistência da parte daqueles que historicamente se beneficiam da discriminação de que são vítimas os grupos minoritários”.

O ministro Cezar Peluso disse que basta uma visão sistemática da Constituição Federal para perceber que ela tutela classes ou grupos desfavorecidos ou discriminados. Contra o argumento de que os cotistas seriam rejeitados pelo mercado, o ministro afirmou que “o fato objetivo é que, com o diploma, de algum modo está garantido o patrimônio educacional. “O mérito é um critério justo apenas entre candidatos que tiveram oportunidades idênticas ou assemelhadas”, argumentou.

“Não posso deixar de concordar com o relator que as cotas raciais são adequadas, necessárias, têm peso suficiente para justificar as restrições que trazem a certos direitos de outras etnias. Mas é um experimento que o Estado brasileiro está fazendo e que pode ser controlado e aperfeiçoado”, concluiu Peluso.

Necessidade de aprimoramento

O ministro Gilmar Mendes votou a favor das cotas raciais como forma de ingresso em universidades públicas, mas ressaltou que o modelo tem de ser aperfeiçoado e criticou o que chamou de “tribunal racial” da Universidade de Brasília (UnB). Ele lembrou o caso dos gêmeos univitelinos Alex e Alan Teixeira da Cunha. Em 2007, o Centro de Seleção e de Promoção de Eventos (Cespe) admitiu Alan pelo sistema de cotas e barrou Alex. Depois, voltou atrás na decisão.

Mendes citou outros exemplos e disse que eles mostram que o sistema tem de ser aperfeiçoado. O ministro também lembrou que parte do problema no acesso às universidades públicas é causado pelo número reduzido de vagas em importantes cursos. Foi aparteado pelo ministro Joaquim Barbosa, que lembrou que quando se formou pela UnB, junto com Mendes, havia 30 vagas no curso de Direito. Hoje, segundo o ministro, há 50 vagas. “Um absurdo”, disse.

De acordo com Gilmar Mendes, seria mais razoável adotar um critério objetivo de índole sócio-econômica. Para ele, o modelo de cotas da UnB é “ainda constitucional”. Ele afirmou que a política pode ser aperfeiçoada e citou o exemplo do ProUni, programa do governo federal, que, além da raça, leva em conta critérios sociais. Ao fim, contudo, o ministro frisou que “não se pode negar a importância de ações que visem a combater essa crônica desigualdade” entre brancos e negros e votou a favor das cotas raciais.

Como o ministro Joaquim Barbosa na sessão de quarta-feira, o Marco Aurélio fez referência em seu voto às ações afirmativas dos Estados Unidos, que ajudaram a levar Barack Obama à presidência dos Estados Unidos. E ressaltou o ponto do voto de Lewandowski em que se coloca que o sistema de cotas raciais deve ser temporário.

“Não se pode falar em Constituição Federal sem levar em conta, acima de tudo, a igualdade. Precisamos saldar essa dívida para alcançarmos a igualdade”, disse Marco Aurélio. Segundo o ministro, as autoridades públicas se pautarão por critérios razoavelmente objetivos para definir quem serão as pessoas beneficiadas por cotas. “Se somos capazes de produzir estatísticas sobre a posição do negro na sociedade e se é evidente a situação do negro no mercado de trabalho, e não podemos negar isso, parece possível indicar aqueles que devem ser favorecidos pela política inclusiva”, afirmou.

O decano do tribunal, ministro Celso de Mello, lembrou do necessário ativismo judicial norte-americano na integração social entre negros e brancos. O ministro citou que as ações afirmativas visam proteger grupos vulneráveis, não apenas minoritários. Deu como exemplo as mulheres, que apesar de existirem em maior número que os homens no Brasil, são vulneráveis e merecem proteção em nome da democracia constitucional.

Celso de Mello citou que os compromissos assumidos pelo Brasil no plano internacional em torno da aplicação de princípios de direitos humanos justificam políticas de ações afirmativas. “Os deveres que emanam desses instrumentos impõem a execução responsável e consequente dos compromissos assumidos em relação a todas as pessoas, mas principalmente aos grupos vulneráveis, que sofrem a perversidade da discriminação em razão de sua origem étnica ou racial”, afirmou.

Por último, votou o ministro Ayres Britto, presidente do Supremo. De acordo com ele, o substantivo igualdade só faz sentido para quem é desfavorecido. O ministro frisou que nunca houve necessidade de Constituição para guardar interesses do grupo hegemônico. “Os brancos, em matéria de discriminação, nunca precisaram de Constituição. Os heterossexuais nunca precisaram de Constituição para garantir-lhes o direito sexual”, afirmou. O ministro também disse que “a Constituição, em seu preâmbulo, já é um sonoro não ao preconceito”.

Cotas constitucionais

O Supremo julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186. Ajuizada pelo DEM contra a Universidade de Brasília, a ação questionava a reserva de 20% das vagas previstas no vestibular para preenchimento a partir de critérios étnico-raciais.

Na sessão de quarta, o relator, ministro Ricardo Lewandowski, disse o sistema fixado pela UnB preenche o requisito de ser temporário, já que foi instituído em 2004 e fixado para durar dez anos. Ou seja, as cotas são transitórias e visam instituir um “ambiente acadêmico plural e diversificado, superando distorções históricas”. Lewandowski iniciou seu voto afirmando que era necessário revisitar o princípio da igualdade. E que para bem cumprir o princípio, é preciso observar seu aspecto material, e não apenas formal. Ou seja, “é preciso atentar à desequiparação do mundo dos fatos”.

O ministro sustentou que a adoção de políticas afirmativas leva à superação de uma perspectiva meramente formal do princípio da isonomia. “O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida. O modelo constitucional brasileiro contempla a justiça compensatória”. Ricardo Lewandowski também frisou que as políticas de ação afirmativa não nasceram nos Estados Unidos, como muito se apregoa, mas sim na Índia, para combater a desigualdade e a crescente exclusão social.

O decano do tribunal, ministro Celso de Mello, lembrou que as políticas de ação afirmativa deram resultado na Índia, onde, hoje, pessoas de castas mais baixas se tornaram dirigentes do país. O ministro Joaquim Barbosa lembrou o caso do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, para exemplificar o bom resultado que uma política compensatória de cotas pode trazer.

O relator do processo também ressaltou que o reduzido número de negros em cargos de direção em empresas públicas ou privadas resulta da discriminação. Os programas de ação afirmativa são uma forma de compensar essa discriminação, culturalmente arraigada. “Não basta não discriminar. É preciso viabilizar. A neutralidade estatal ao longo dos anos mostrou-se um fracasso”, afirmou.

O DEM sustentava que a UnB “ressuscitou os ideais nazistas” e que as cotas não são uma solução para as desigualdades no país. “Cotas para negros não resolvem o problema. E ainda podem ter o condão de agravar o problema, na medida em que promovem a ofensa arbitrária ao princípio da igualdade”.

De acordo com o partido, sua intenção não era discutir a constitucionalidade das ações afirmativas de forma geral, como política necessária para a inclusão de minorias. Também “não se discute sobre a existência de racismo, de preconceito e de discriminação na sociedade brasileira”. O que a legenda queria discutir, de acordo com a ação, é “se a implementação de um Estado racializado ou do racismo institucionalizado, nos moldes praticados nos Estados Unidos, na África do Sul ou em Ruanda seria adequada para o Brasil”.

Quando propôs a ação, em julho de 2009, o DEM pediu liminar para suspender a matrícula dos aprovados no vestibular da UnB. O então presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, rejeitou o pedido. Nesta quinta, ao julgar o mérito da ação, o Supremo a rejeitou integralmente.

Fonte: ConJur