Advogado e professor da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), Marcelo Mazzola comenta o Novo Código do Processo Civil (CPC/15) em artigo escrito para o portal da AMAERJ. Ao longo do texto, ele faz referências ao desembargador do TJ-RJ José Carlos Barbosa Moreira, professor titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), um dos maiores processualista do país, morto em agosto de 2017. Confira o artigo na íntegra:
Por Marcelo Mazzola
Os textos do Professor Barbosa Moreira devem ser lidos e relidos por qualquer profissional do Direito. Além de geniais, abordam temas de vanguarda para sua época, sempre com uma pitada de ironia e metáforas inteligentes que se tornaram inesquecíveis. Particularmente, sempre me recordo da seguinte passagem:
“quando, num mesmo momento histórico, o legislador se empenha em dar igual ênfase à preservação das garantias e à simplificação do procedimento, assume o risco de fazer brotar, no espírito de algum observador desprevenido, a suspeita de estar querendo acender simultaneamente uma vela a Deus e outra a Satanás”.[1]
A admiração pelo Professor me estimulou a idealizar esse pequeno artigo, com fragmentos e passagens de suas obras. Tudo isso para que o leitor possa perceber a contemporaneidade de seu pensamento, sobretudo nesse momento de sedimentação do CPC/15. Suas colocações são cirúrgicas e refletem muitas das preocupações atuais.
Separei os temas por tópicos para facilitar a identificação e teci singelos comentários em cada ponto. Em razão das limitações editorais, não tive, obviamente, como mencionar todos os trabalhos do professor e tampouco incluir muitas notas de referência, o que será feito em outra oportunidade.
Todos os trechos em itálico são fragmentos extraídos da pesquisa realizada, ou seja, são as próprias palavras do mestre. Não fiz qualquer inserção, a exceção de um ou outro conectivo (apenas para dar maior fluidez ao texto).
a) Duração razoável do processo
O processo civil está atravessando período de intensa atividade reformadora.[2] Quase sempre quando se traz o assunto, alguém supõe contribuir valiosamente para o debate citando determinado caso em que pessoa da família, ou do grupo de amigos, se viu envolvida em pleito de longa duração. Porém, não precisamos de exemplos acidentais. Precisamos, sim, de dados estatísticos colhidos e tratados com boa técnica.
No Brasil, não tem havido interesse na elaboração de estatísticas sobre duração de processos. O desejo de prolongar o feito costuma provocar, por parte do interessado, manobras dilatórias. Uma das mais comuns é a interposição de recursos sabidamente infundados, ou mesmo inadmissíveis, contra toda e qualquer decisão proferida no processo. As leis esforçam-se em prover o órgão judicial de meios de combater a chicana; na prática, todavia, as providências cabíveis são muitas vezes ineficazes ou insuficientes para debelar o mal. Peço licença para inserir neste ponto o registro de experiência pessoal. Exerci a judicatura por cerca de quinze anos no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. As diversas Câmaras recebiam igual número de processos e trabalham sob a mesma lei processual e o mesmo regimento interno. Enquanto uma Câmara julgava recurso de apelação em um ou dois meses, outras gastavam muito, às vezes mais de um ano, para executar trabalho diferente.[3]
Ressalve-se, contudo, que, se para tornar melhor a prestação jurisdicional é preciso acelerá-la, muito bem: não, contudo, a qualquer preço.[4]
Comentários: o princípio da duração razoável do processo está previsto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal (incluído pela Emenda Constitucional 45/04). No plano internacional, muitos dispositivos legais também o prestigiam, como, por exemplo, os arts. 6º, 1º, da Convenção Europeia de Direitos do Homem, 8º, § 1º, do Pacto de São José da Costa Rica, 7.1 dos Principles of Transnational Civil Procedure, 15 da Constituição da Província de Buenos de Aires, 111 da Constituição italiana, 20 da Constituição de Portugal, 11.4 do Código de Processo Civil do Uruguai (alteração conforme Lei nº 19.090, de 26 de junho de 2013), 47, nº 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 14, § 1º, do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos de 1966, 6ª emenda da Constituição Americana, 1.4, nº 2, alíneas “c”, “g” e “l”, das Civil Procedural Rules, entre outros.
No CPC/15, a duração razoável do processo foi uma das preocupações da Comissão de Juristas do código e está textualmente estampada nos arts. 4º, 6º e 139, II, 685, parágrafo único, do CPC. Além disso, muitos outros institutos prestigiam a ideia de duração razoável do processo, como, por exemplo, as tutelas provisórias (arts. 294 e seguintes), destacando-se a tutela de evidência (art. 311), a improcedência liminar do pedido (art. 332), o julgamento monocrático dos recursos (art. 932, V), entre outros.
De qualquer forma, somente através de pesquisas empíricas será possível analisar se as alterações promovidas pelo CPC/15 estão realmente contribuindo para a duração razoável do processo.
Vale consignar, por fim, que como a duração razoável do processo não goza de hierarquia frente aos demais preceitos constitucionais, deve ser compatibilizada com outras garantias fundamentais.
b) Requisitos da tutela de urgência e limites a serem observados para a execução da ordem judicial
O instituto da antecipação de tutela já floresceu abundante literatura. E um ponto merece ressalto: a preocupação, intensa em setores doutrinários, de estabelecer critérios rigorosos de distinção entre as medidas cautelares e as antecipatórias. Não será um tanto exagerada tal preocupação? Bem pesadas as coisas, talvez nem sequer valha a pena fazer grandes esforços nesse sentido.[5]
Por outro lado, a crônica judiciária registra casos em que, a título de antecipação de tutela, se ordenou a entrega de medicamentos ao requerente, e até o arrombamento de armários dos hospitais públicos, com tal fim. Desse tipo de excessos seria bom que não tivéssemos de defender-nos, como seria igualmente bom que não precisássemos, por outro lado, lamentar uma exagerada timidez na decretação de providências urgentes. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra: aqui, como em quase tudo, in medio est virtus.[6]
Comentários: o CPC/15 unificou os requisitos para a concessão da tutela antecipada e da tutela cautelar (art. 300 do CPC), quais sejam, a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. O código também previu a fungibilidade das tutelas provisórias[7] (305, parágrafo único), destacando que, para a efetivação de tais medidas, pode o juiz determinar as medidas que considerar adequadas (art. 297).
Além disso, para assegurar o cumprimento de qualquer ordem judicial, o julgador pode ordenar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária (art. 139, IV). O tema é sensível, pois, de um lado, a execução deve ser realizada no interesse do exequente (art. 797) e, de outro, a execução deve ser realizada pelo modo menos gravoso ao executado (art. 805). Nesse particular, entendemos que o juiz não pode criar uma sanção sem previsão legal, mas pode aplicar uma medida coercitiva atípica, inclusive com o mesmo teor da “punição”, quando demonstrar, fundamentadamente, que se trata do instrumento necessário, adequado, proporcional e razoável para compelir o devedor a cumprir a ordem judicial.
c) Aproximação entre Civil Law e Common Law
Percebe-se, nos últimos tempos, entre os juristas da chamada família “romano-germânica”, o interesse pelos ordenamentos anglo-saxônicos. Não falta quem deposite na absorção de elementos característicos daquela outra família uma grande esperança de imprimir maior eficácia ao funcionamento da máquina judiciária. Todavia, é sempre útil, para dizer o menos, ter aqui em mente a necessidade de determinadas cautelas. Uma delas, bastante óbvia, é a aferição inescrupulosa da compatibilidade entre o enxerto pretendido e a compleição do organismo que vai acolher. Negligenciar esse ponto é assumir sério risco de rejeição do transplante. Ninguém, com efeito, pode ignorar os graves perigos inerentes à afoiteza de “importações” levada a cabo sem o conhecimento integral e preciso das características da peça importada e da maneira por que ela se insere, estrutural e funcionamento, no mecanismo de origem.[8]
“La anglicanización del proceso, al menos en algunas de sus manifestaciones, conlleva el riesgo de resolverse en un trasplante efectuado sin la ponderación prudente de la compatibilidad de los organismos”.[9]
Note-se que os próprios anglo-saxões não estão satisfeitos, nos vários quadrantes no planeta, com os respectivos sistemas processuais. Parece que, religião à parte, cá e lá más fadas há.[10]
Bem pode suceder que um dia o processo de civil law e o processo de common law venham a caracterizar-se mais por aquilo em que se assemelham do que por aquilo que contrastam.[11]
Se nos permitem uma imagem – aproximativa, como todas as imagens –, é como se assistíssemos à progressiva aproximação de dois círculos, a princípios separados por longo espaço. Chega a hora em que eles se tangenciam, ou se mesmo se tornam secantes. Haverá uma área comum, mas também haverá, num e outro círculo, grandes arcos para os quais subsistirá a separação.[12]
Em termos esquemáticos, passam-se as coisas como se duas pessoas caminhassem ao longo da mesma rua, em sentido opostos, uma de cada lado, embora troquem de calçada, de um trecho para outro do itinerário.[13]
Comentários: a aproximação entre civil law e common law não é nova e muitas influências já foram diagnosticadas na história (o princípio do due process of law, correspondente ao devido processo legal, as small claims courts, equivalente aos Juizados Especiais Cíveis, o mecanismo norte-americano do certiorari, uma espécie de filtro recursal para aliviar a carga dos tribunais, “algo semelhante” – nas palavras do próprio Barbosa Moreira –, à repercussão geral, além do próprio sistema de precedentes, que será tratado no próximo item, entre outros).
O CPC trouxe novidades que se conectam diretamente ao sistema do common law, como, por exemplo, o cross examination, isto é a possibilidade de a parte inquirir diretamente a testemunha trazida pela parte adversária (art. 459), o que já acontece no processo penal brasileiro (art. 212 do CPP, alterado pelo art. 1º da Lei nº 11.690/08). A alteração é interessante, pois garante maior fluidez do depoimento e facilita o encadeamento lógico das ideias. Podemos citar, ainda, o estímulo aos métodos alternativos de resolução de conflitos (os chamados Alternative Dispute Resolutions – inspirados no Multidoor Courthouse System), destacando-se a arbitragem, a mediação e a conciliação. Boa iniciativa, pois há muito, realmente, a decisão adjudicada deixou de ser a melhor ferramenta para a pacificação de um conflito.
d) A preocupação com o sistema de precedentes “inspirado” no Common Law
Sem nenhum intuito de desempenhar o papel antipático de “desmancha-prazeres”, registramos que a experiência dos Estados Unidos – vistos como o habitat por excelência dos precedentes vinculantes – não confirma por inteiro as otimísticas expectativas. Não possuindo bola de cristal, temos de reservar o juízo sobre o que acontecerá no Brasil; em todo caso, porém, atrevemo-nos a sugerir que roça pela imprudência apostar muito alto no bom sucesso das mudança – e isso, a supor-se que um dia veremos a saber com exatidão o que dela terá resultado.[14]
A nosso ver, os mecanismos previstos para a revisão dos paradigmas não exorcizam suficientemente o risco do imobilismo jurisprudencial, dada a notória relutância dos tribunais em recuar de posições consolidadas. De certas normas todos reconhecem com facilidade que devem ser aplicadas do mesmo modo em todo o território nacional; entre elas, sem dúvida, as normas constitucionais. Já com relação a outras pode-se mostrar mais aconselhável dar espaço a porção menor ou mais de flexibilidade interpretativa, capaz de levar em conta variáveis regionais ou locais, a cuja luz também se justifique uma variação nas soluções. É o que sucede, por exemplo, com disposições legais que se valham de conceitos jurídicos indeterminados, cuja concretização se sujeite à influência de fatores culturais dificilmente redutíveis à uniformidade, sobretudo em país com as dimensões e as desigualdades do nosso.[15]
Aliás, não raro, notamos que a motivação judicial reduz-se à enumeração dos precedentes: o tribunal dispensa-se de analisar as regras legais e os princípios jurídicos pertinentes – operação a que estaria obrigado – e substitui seu próprio raciocínio pela mera invocação de julgados anteriores. Dia virá em que teremos dificuldade de identificar algum caso em que não haja vinculação.[16]
Comentário: como forma de garantir a isonomia, racionalizar a prestação jurisdicional e evitar a chamada “jurisIMPRUDÊNCIA”, o CPC idealizou um sistema de precedentes, estabelecendo que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente (art. 926).
Além disso, dispõe que os julgadores devem observar as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; os enunciados de súmula vinculante; os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; e a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados (art. 927).
O problema é que não existe um consenso do que seja um precedente. Tampouco se sabe quais são os “precedentes” vinculantes. Existe ferrenha controvérsia doutrinária sobre a natureza e a força dos “precedentes” listados no art. 927.
Ademais, não é fácil o caminho processual para se buscar a superação de um precedente, já que as alterações trazidas pela Lei nº 13.256/15 (art. 1.030, por exemplo) dificultaram o acesso aos tribunais superiores.
e) Proibição de decisões-surpresa e fundamentação judicial
Ao julgador não é dado levar em conta senão elementos probatórios colhidos segundo procedimento em que as partes hajam tido oportunidade real (e não apenas nominal) de participar. Sempre que uma das partes requerer a juntada de documentos, o juiz ouvirá a tal respeito a outra, não podendo proferir decisão sem antes tomar essa providência: a infração da regra é causa de nulidade.[17]
Com efeito, en un auténtico Estado de Derecho, conviene añadir, no basta que el órgano judicial esté convencido de que tal o cual proposición sea verdadera o falsa: es necesario, además, que él indique en la sentencia las razones de su convencimiento.[18]
Comentário: as partes devem ter o direito de participar e influir eficazmente na convicção do julgador. Nessa linha, o artigo 10 do CPC prevê o chamado “dever de consulta” e impede que juiz decida em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de manifestar-se, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. Essa conduta evita as “decisões-surpresa” e impede que o julgador invoque normas não suscitadas pelos litigantes, trilhando um caminho totalmente novo sem nenhuma sinalização anterior. A famosa proibição da sentença de terza via, como diriam os italianos.
Por outro lado, vale lembrar que o CPC alçou o contraditório a princípio infraconstitucional (arts. 7º, 9º e 10), reforçando o dever de fundamentação das decisões judiciais (arts. 11 e 489, § 1º, do CPC, na linha do art. 93, IX, da CF).[19] Faz todo sentido, eis que o contraditório participativo[20] se conecta diretamente à fundamentação das decisões judiciais, já que este é o momento em que o magistrado pode demonstrar que considerou toda a atividade argumentativa e probatória desenvolvida pelas partes capaz de influir na sua decisão.
f) Negócios jurídicos processuais
O processo civil dá sinais de querer, em certa medida, privatizar-se.[21]
Aliás, nada impede que autor e réu se comprometam validamente a não indicar assistentes técnicos, deixando ao exclusivo encargo do perito a realização da diligência.[22]
Comentários: o CPC adota um modelo cooperativo de processo, valorizando a autonomia da vontade e a maior participação dos sujeitos processuais. Fala-se em contratualização do processo e customização da demanda. Embora os negócios jurídicos processuais não sejam inéditos,[23] o artigo 190 do CPC[24] consagra, definitivamente, o protagonismo das partes, permitindo que tenham maior ingerência no controle dos rumos do processo e reequilibrando, de certa forma, os interesses públicos e privados. Essa cláusula geral permite a realização de convenções processuais atípicas (como, por exemplo, a dispensa dos assistentes técnicos, o rateio das despesas processuais, a dispensa da audiência do art. 334, entre outros). O CPC também traz vários exemplos de convenções processuais típicas, como a escolha conjunta do perito (art. 471), do mediador/conciliador (art. 168), do foro de eleição (art. 63), a possibilidade de dinamização consensual do ônus da prova (art. 373, § 3º), a suspensão do processo (art. 313, II), etc.
Vale lembrar que essa maior autonomia da vontade das partes não impede o necessário (irrenunciável e inafastável) controle judicial sobre a regularidade da prática dos atos, a começar pela observância dos requisitos previstos na respectiva cláusula geral: capacidade das partes e possibilidade de autocomposição. Além disso, o juiz, de ofício ou a requerimento, pode controlar a validade das convenções, recusando-lhes aplicação nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade (art. 190, parágrafo único).
g) Dever de cooperação e primazia de mérito
Ao juiz consciencioso e criativo também cabe salvar do naufrágio postulações mal formuladas, mas suscetíveis de correção.[25] Aliás, é difícil a tarefa do advogado de explicar ao seu cliente que o pedido jamais será apreciado, porque o recurso não foi conhecido. É como se, após os aperitivos, os convidados se despedissem sem que lhes fossem servido o prato principal.[26]
Menor dose de solenidade e formalismo contribuirá para suavizar o desconforto do ingresso em juízo. Em época de crises reiteradas e de transformações profundas, como a que estávamos vivendo, o juiz vê-se convocado a dar mais que o mero cumprimento pontual de uma rotina burocrática. Por difícil que lhe seja, com a carga de trabalho que o oprime, não há como exonerá-lo de uma responsabilidade que a ninguém mais se poderia atribuir (daí porque não pode se comportar como um convidado de pedra[27] ou um simples fiscal incumbido de vigiar o comportamento, para assegurar a observância das regras do jogo e, no fim, proclamar o vencedor[28]). Pois a verdade é que, sem a sua colaboração, por melhores leis que tenhamos, jamais lograremos construir um processo socialmente efetivo.[29]
Comentários: sob o prisma do modelo cooperativo do processo (art. 6º do CPC), é dever do magistrado diligenciar para que os atos processuais não sejam praticados de forma viciada ou para que possam ser corrigidos rapidamente, quando já identificado o defeito, inclusive de oficio em algumas situações (art. 139, IX).[30]
Nesse sentido, cabe ao juiz apontar as deficiências postulatórias das partes, permitindo que eventuais irregularidades sejam supridas a tempo. Um bom exemplo é a possibilidade de emenda da petição inicial, o que se aplica ao procedimento comum (art. 321), ao procedimento monitório (art. 700, § 5º), à ação rescisória (art. 968, § 5º), ao procedimento de usucapião extrajudicial remetido ao Judiciário (art. 1.071 – que deu nova redação ao art. 216, § 10, da Lei de Registros Públicos), à reclamação, aos processos coletivos, entre outros.
Por sua vez, a ideia de primazia de mérito está intimamente ligada ao dever de prevenção e objetiva, na prática, dar concretude ao artigo 4º do CPC, que estabelece que as partes têm direito à “solução integral do mérito”, em tempo razoável, decisão esta que deve ser “justa e efetiva” (art. 6º).
A preocupação do legislador em assegurar uma “decisão de mérito” é externada em vários dispositivos do código[31] e a ideia é viabilizar, sempre que possível, o julgamento da causa, afastando eventuais óbices, vícios e vulnerabilidades. Afinal, o rigor processual e o culto aos procedimentos não podem transformar o processo em um protagonista de si mesmo, desvalorizando os anseios e os legítimos direitos da sociedade.
Conclusão
É impressionante como alguns pensamentos do Professor Barbosa Moreira, externados há mais de duas décadas, se mantêm atuais. Talvez algumas de suas aflições e dos problemas elencados já existissem à época, mas, provavelmente, não com a dimensão que o mestre carioca enxergou.
Muito do que vaticinou se concretizou no CPC/15, como a unificação dos requisitos da tutela cautelar e antecipada, a proibição de decisões-surpresa, a positivação do princípio da cooperação, a ideia de primazia de mérito, entre outros.
Por outro lado, problemas antigos como a duração razoável do processo e os efeitos colaterais decorrentes da aproximação com o sistema do common law, sobretudo envolvendo a questão dos precedentes, ainda assombram o jurisdicionado, sem uma perspectiva concreta de melhora ou definição a curto prazo.
Por fim, temas sensíveis como os limites das medidas executivas e dos negócios jurídicos processuais desafiam – e certamente desafiarão por um bom tempo – a doutrina e a jurisprudência.
Tudo ficaria mais fácil se o mestre ainda pudesse nos brindar com as suas “miradas”…
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Mestre em Processo Civil pela UERJ. Professor de Processo Civil da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), da Associação Brasileiro de Direito Processual (ABDPro) e do Instituto Carioca de Processo Civil (ICPC). Advogado.
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[0] O próprio título também é uma referência a um de seus trabalhos: BARBOSA MOREIRA, Jose Carlos. Miradas sobre o Processo Civil Contemporâneo. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito processual. Sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997. Sobre outras homenagens ao processualista, vale conferir CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro. O mestre e sua obra. Disponível em https://pt.scribd.com/document/68653602/jose-carlos-barbosa-moreira-o-mestre-e-sua-obra. Acesso em: 30.05.2018.
[1] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Miradas sobre o processo civil contemporâneo. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito processual. Sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 49-50.
[2] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Correntes e contracorrentes no processo civil contemporâneo. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. Nona Série. Rio de Janeiro: Saraiva, 2007.
[3] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O Problema da duração dos processos: premissas para uma discussão séria. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. Nona Série. Rio de Janeiro: Saraiva, 2007.
[4] BARBOSA MOREIRA, Jose Carlos. O futuro da Justiça: alguns mitos. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual Civil. Oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004.
[5] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela de urgência e efetividade do Direito. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, n. 23, jul./dez.2003, p. 62-74
[6] Idem.
[7] Embora o CPC só aborde expressamente a “conversão” da tutela cautelar antecedente em tutela antecipada, também é possível a “conversão” da tutela antecipada em tutela cautelar.
[8] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre alguns aspectos do processo (civil e penal) nos países anglo-saxônicos. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. Sétima Série, São Paulo: Saraiva, 2001.
[9] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Breves observaciones sobre algunas tendencias contemporáneas del proceso penal. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 86, abr./jun. 1997.
[10] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre alguns aspectos do processo (civil e penal) nos países anglo-saxônicos. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. Sétima Série. São Paulo: Saraiva, 2001.
[11] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Correntes e contracorrentes no processo civil contemporâneo. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. Nona Série. Rio de Janeiro: Saraiva, 2007.
[12] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O processo civil contemporâneo: um enfoque comparativo. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. Nona série. São Paulo: Saraiva, 2007.
[13] BARBOSA Moreira, José Carlos. O processo civil brasileiro entre dois mundos. Revista da EMERJ, v. 4, n. 16, 2001. Disponível em www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista16/revista16_11.pdf . Acesso em: 28.05.2018.
[14] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Súmulas, jurisprudência, precedente: uma escalada e seus riscos. Temas de Direito processual. Nona série. São Paulo: Saraiva, 2007.
[15] Idem.
[16] Idem.
[17] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A garantia do contraditório na atividade de instrução. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 35, jul./set./1984.
[18] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Prueba e motivación de la sentencia. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. Oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004.
[19] Vale registrar que o dever de fundamentação está capilarizado ao longo do CPC (arts. 12, § 2º, IX, 173, § 2º, 370, parágrafo único, 373, § 1º, 426, 489, §§ 1º e 2º, 647, parágrafo único, 919, § 2º, 927, § 4º, 980, parágrafo único, 1.013, § 4º, 1.021, § 4º, 1.026, § 2º e 1.067 (que deu nova redação ao artigo 215 do Código Eleitoral – vide especialmente o § 6º) e se aplica a qualquer pronunciamento judicial com carga valorativa (por exemplo, fixação de honorários sucumbenciais ou recursais, invalidação de negócios jurídicos processuais, decretação de segredo de justiça, desconsideração da personalidade jurídica, aplicação de precedentes, etc.
[20] O contraditório participativo deve ser respeitado e observado em todas as fases do processo. O CPC, por exemplo, prevê a necessidade de o juiz intimar o embargado para se manifestar sobre os embargos de declaração, “caso seu acolhimento implique modificação da decisão embargada”. (art. 1.023, § 2º). Além disso, regula a necessidade de citação do sujeito passivo da desconsideração da personalidade jurídica (art. 135), bem como estabelece a intimação do réu para apresentar contrarrazões de apelação em caso de improcedência liminar do pedido (art. 332, § 4º). Nada obstante, exige o contraditório prévio e efetivo para permitir a coisa julgada da questão prejudicial (art. 503, § 1º, II). Vide também outros dispositivos do CPC que consagram a importância do contraditório: arts. 98, VIII, 115, 329, II, 350, 372, 432, 457, § 3º, 526, § 1º, 596, 619, 628, § 1º, 637, 638, 641, 722, 728, 754, 792, § 4º, 808, 817, parágrafo único, 818, 819, parágrafo único, 862, § 1º, 869, caput e § 4º, 872, § 2º, 874, 920, I, 921, § 5º, 962, § 2º, 1.009, § 2º, 1.036, § 2º e 1.037, § 11.
[21] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Processo civil e processo penal: mão e contramão?. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 94, abr./jun/1999.
[22] BARBOSA MOREIRA. Convenção das partes sobre matéria processual. Temas de Direito Processual. Terceira Série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 92)
[23] Na Constituição de 1824, por exemplo, as partes já tinham o direito de nomear “Juízes Árbitros” (art. 160). No CPC de 1939, as partes podiam escolher o perito (o artigo 129 teve sua redação original alterada pelo Decreto-Lei nº 4.565/42 e posteriormente pelo Decreto-Lei nº 8.570/46). Em relação ao CPC/73, várias convenções processuais eram previstas, como, por exemplo, foro de eleição (art. 111); suspensão convencional do processo (art. 265, II); regra de distribuição do ônus da prova (art. 333, parágrafo único); adiamento da audiência por convenção das partes; modificação do réu na nomeação à autoria (arts. 65 e 66); sucessão do alienante ou do cedente pelo adquirente ou cessionário da coisa litigiosa (art. 42, § 1º); desistência do recurso (art. 158 e 500, III); convenção sobre prazos dilatórios (art. 181); convenção de arbitragem e compromisso arbitral (arts. 267, VII, 300, § 4º e 301, IX); reconhecimento da procedência do pedido (art. 269, II); transação judicial (arts. 269, III, 475-N, III e IV, e 794, II); renúncia da ação (art. 269, V); adiamento da audiência (art. 453, I); convenção sobre alegações finais orais de litisconsortes (art. 454, § 1º); liquidação por arbitramento em razão de convenção das partes (art. 475-C, I); escolha do juízo da execução (art. 475-P, § único); renúncia ao prazo estabelecido exclusivamente em favor do renunciante e ao direito de recorrer (arts. 186 e 502); requerimento de preferência no julgamento perante os tribunais (art. 565, § único); desistência da penhora pelo exequente (art. 667, III); opção do executado pelo pagamento parcelado (art. 745-A); acordo de pagamento amigável de insolvente (art. 783); escolha de depositário de bens sequestrados (art. 824, I); acordo de partilha (art. 1.031); etc.
[24] Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
[25] BARBOSA MOREIRA, Jose Carlos. Efetividade do processo e técnica processual. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. Sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997.
[26] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Restrições ilegítimas ao conhecimento dos recursos. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito processual. Nona Série. São Paulo: Saraiva, 2007.
[27] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O processo civil contemporâneo: um enfoque comparativo. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito Processual. Nona série. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 44.
[28] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A Função Social do Processo Civil Moderno e o papel do Juiz e das Partes na direção do processo. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 37, 1985, p. 140-150.
[29] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Por um processo socialmente efetivo. In: BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Temas de Direito processual. Nona série. São Paulo: Saraiva, 2007.
[30] Para maior aprofundamento, ver o nosso MAZZOLA, Marcelo. Tutela Jurisdicional Colaborativa: a cooperação como fundamento autônomo de impugnação. Curitiba: CRV, 2017.
[31] Arts. 64, § 4º, 76, 139, IX, 282, caput, §§ 1º e 2º, 186, § 2º, 303, § 6º, 317, 319, §§ 2º e 3º, 321, 329, II, 331, 338, 339, 352, 485, § 7º, 488, 700, § 5º, 775, § único, II, 932, § único, 938, §§ 1º e 2º, 968, § 5º, 972, 1.007, §§ 2º, 4º, 6º e 7º, 1.013, § 3º, incisos I a IV, § 4º, 1.017, § 3º, 1.024, § 5º, 1.027, § 2º, 1.029, § 3º, 1.031, §§ 2º e 3º, 1.032, caput e § único, 1.033, 1.041, § 2º, e 1.044, § 2º.