O ministro Luis Felipe Salomão, corregedor nacional de Justiça, é o entrevistado da semana da revista IstoÉ. Confira abaixo a íntegra da entrevista:
IstoÉ: O sr. julga que as acusações do bilionário Elon Musk ao ministro Alexandre de Moraes significam uma ameaça à soberania nacional?
Ministro Luis Felipe Salomão: O ministro Alexandre de Moraes, cujo trabalho acompanhei no TSE, é um guardião da democracia. Ele, com enorme sacrifício pessoal, vem, por meio de suas decisões, garantindo a efetividade da nossa democracia. E todas as empresas, nacionais ou estrangeiras, devem se submeter ao império das leis brasileiras e das decisões dos tribunais superiores. Quando isso não ocorre, ficam sujeitas às sanções e é simples assim em um País que respeita o Estado de Direito.
IstoÉ: O sr. entende que o Poder Judiciário foi fundamental para impedir a recente tentativa de golpe de Estado?
Ministro Luis Felipe Salomão: O Judiciário cumpriu um papel muito relevante nesse processo da garantia da democracia, não só do processo eleitoral, em que o TSE teve um papel de centralidade, criando precedentes e julgando questões em que se coibiam notícias falsas. O TSE assentou que disparar fake news por meio de mensagem eletrônica pode desequilibrar o pleito e gerar cassação de mandatos. O TSE chegou a cassar o deputado Fernando Franceschini, do Paraná, que atentou contra as urnas eletrônicas. O tribunal foi criando jurisprudência que cristalizou a defesa da democracia e do sistema eleitoral. Garantiu as eleições e impediu qualquer atentado contra o processo democrático. Também o STF teve um papel central, garantindo as decisões do TSE. Ao mesmo tempo, garantiu decisões importantes como na questão da vacina durante a pandemia, época em que havia um negacionismo muito grande. O tribunal foi firme também quanto aos atentados do dia 8 de janeiro de 2023. O ministro Alexandre, de forma corajosa, tem conduzido os processos com equilíbrio e muita determinação. Proferindo sentenças considerando o contraditório, mas aplicando as sanções, mesmo quando se trata de militares. Acho que o Supremo foi muito feliz no momento em que colocou a questão da inexistência do poder moderador das Forças Armadas, como foi reconhecido pelos próprios militares.
IstoÉ: O ministro Gilmar Mendes chegou a dizer que o militar que desejar participar da política tem que deixar a farda. O sr. concorda com essa postura?
Ministro Luis Felipe Salomão: Acho que não só o militar. Tem que ter uma quarentena também para os juízes, para membros do Ministério Público e para algumas autoridades policiais e militares. Acho que precisa haver uma quarentena para se sair da carreira e ingressar na atividade política, porque se não tiver a quarentena, pode haver alguns desvios, como aconteceu em alguns casos recentes, em que o uso da toga e da carreira no Judiciário foram utilizadas como trampolim para a carreira política. Em nenhum país do mundo isso é possível. Tem que ser uma quarentena razoável, de no mínimo 8 anos.
IstoÉ: O sr. acha que estivemos muito próximos de uma ruptura democrática?
Ministro Luis Felipe Salomão: Enfrentamos um período muito grave. Foi uma situação limite o que aconteceu no 8 de janeiro. Eu diria que houve riscos, mas que as instituições funcionaram. O Supremo Tribunal Federal funcionou, o TSE funcionou, o Judiciário de primeiro grau funcionou, a Corregedoria e o CNJ funcionaram, assim como o Congresso, o Executivo e o Ministério da Justiça. Todas as instituições brasileiras funcionaram para rechaçar esse risco, que foi real, tanto é verdade que todos os que cometeram crimes no 8 de janeiro estão sendo julgados.
IstoÉ: Vale lembrar que até mesmo parte dos militares não aceitou a ruptura democrática.
Ministro Luis Felipe Salomão: É um sinal também inequívoco de vitalidade do nosso sistema democrático. As instituições funcionaram, e o Exército foi uma delas. Foi garantidor da democracia. O comportamento isolado de um ou outro integrante do Exército não pode ser confundido com a instituição, pois ela preservou a democracia e continua preservando. É um legado que a nossa geração vai deixar para a história e para as futuras gerações, o de não permitir a violação da democracia, conseguida a duras penas. O Brasil amadureceu e demos uma demonstração de que as nossas instituições não aceitarão novas aventuras golpistas.
Temos uma falsa crença sobre essa questão que a síndrome de vira-lata nos proporciona: o nosso Poder Judiciário é reconhecido no mundo todo como eficiente. É autônomo e independente, e o juiz tem as garantias da magistratura, como a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos. E isso desde a primeira Constituição do Império. Temos também uma previsão, na Constituição de 1988, de autonomia administrativa e financeira que quase nenhum Judiciário no mundo tem. Nossos juízes são selecionados, na grande maioria das vezes, por concurso público. São 18 mil no Brasil, que seguem uma carreira definida e com autonomia. Em vários países não há uma carreira delineada como aqui. Juízes são eleitos lá fora, indicados e são transferidos se não agradam ao político local. Aqui não é assim. Somos um pouco vítimas da nossa eficiência, porque a partir da Constituição de 1988 o legislador disse que o Judiciário é o lugar onde você vai reivindicar seus direitos. Então há a judicialização da vida social e da vida política. Isso fez explodir a quantidade de demandas judiciais. Hoje, temos 80 milhões de processos em andamento – é um processo para cada dois habitantes, muito mais que a média mundial. A carga de trabalho dos juízes brasileiros é uma das maiores do mundo.
O volume de trabalho é estonteante e enorme no Brasil. É totalmente falso dizer que o juiz brasileiro ganha muito e trabalha pouco. É um dos três que mais trabalham no mundo. Em termos de remuneração, estamos muito aquém de juízes da Europa e dos Estados Unidos.
É uma questão cultural. O brasileiro é litigante. Leva para o Judiciário suas contendas sociais e cotidianas. Além da questão cultural, tem a facilidade de acesso à Justiça. Ela é barata para se acessar e há uma disponibilidade grande de advogados. Temos 1,3 milhão de advogados, um dos maiores contingentes do mundo, o que facilita o acesso. Apesar do processo democrático que facilita o acesso à Justiça, temos o reverso dessa moeda, com um custo elevado para o funcionamento do Judiciário e o entupimento da máquina. Setores da economia estão extremamente judicializados, como o da Saúde e o setor aéreo, onde você tem uma carga muito grande de demandas. Não existe isso em outros países.
IstoÉ: A Justiça já está usando a inteligência artificial na análise dos processos?
Ministro Luis Felipe Salomão: Estamos fazendo uma pesquisa em conjunto com a Fundação Getúlio Vargas, que eu coordeno, onde analisamos todas as ferramentas de inteligência artificial utilizadas em cada um dos mais de 90 tribunais diferentes, nas áreas trabalhista estadual, federal e militar. Cada um tem a sua ferramenta de inteligência, alguns não têm, mas outros já desenvolveram. Analisamos desde as práticas no STF até os tribunais mais longínquos para ver qual é a ferramenta utilizada. Algumas são muito interessantes e outras só fazem triagem de processos. Há as que já avançaram para a confecção de minutas de decisões. Outras fazem a triagem para buscar demandas predatórias e outras fazem identificação de precedentes vinculantes.
IstoÉ: Já é possível que uma sentença seja dada por meio da Inteligência Artificial?
Ministro Luis Felipe Salomão: Não. O juiz robô ainda é uma ficção e vai ser por muito tempo, porque a sentença é uma atribuição do ser humano. A palavra sentença vem de sentir, e o juiz sente a causa e aplica a lei para aquela causa. Então é impossível você ter um juiz robô que tenha essa sensação de uma causa.
IstoÉ: Como está o processo de moralização que o CNJ desenvolve nos cartórios de todo o País para combater a corrupção?
Ministro Luis Felipe Salomão: A Corregedoria do CNJ realizou um convênio do Coaf com os cartórios para treinar melhor os cartorários na identificação de compra e venda suspeita de imóveis. Por exemplo, o que envolve pagamento em dinheiro vivo sem passar pelo sistema financeiro, o cartório já dá o alerta ao Coaf. Isso vale tanto para compra e venda com dinheiro vivo, o que sempre alimenta suspeitas, como para escrituras feitas com valores menores, indicando subfaturamentos que possibilitam fraudes. É uma poderosa ferramenta de combate ao crime organizado porque se você asfixia a questão financeira, você combate de maneira eficaz a criminalidade. Mas estamos orientando o trabalho dos cartórios também no sentido da ampliação dos serviços sociais.
IstoÉ: Quais, por exemplo?
Ministro Luis Felipe Salomão: Fizemos um convênio com o Ministério da Justiça e temos vários projetos com os cartórios, como o “Registre-se”, visando a realização de registros civis gratuitos. Todo ano, na segunda semana de maio, fazemos um esforço concentrado para atender a população de rua para que ela obtenha registro de nascimento de graça. Hoje, esses moradores não têm documentos e sem isso eles não conseguem nenhum benefício, não conseguem os direitos básicos, como o bolsa-família, e não conseguem um emprego. No último ano, tivemos quase 100 mil atendimentos.
Leia também: Em colóquio internacional, presidente da AMAERJ ressalta importância do Direito Ambiental e ministro elogia juízes do Rio
Autoridades do Brasil e do exterior estarão em encontro de programa da ONU no TJ-RJ
TJ e EMERJ iniciam capacitação de magistrados no sistema Eproc