Notícias | 06 de maio de 2016 17:16

Revista FÓRUM: Vinicius, a queda do ‘Titanic dos Ares’ e o ouro nazista

A inacreditável história de como o poeta sobreviveu ao pouso forçado do ‘inexpugnável’ hidroavião Lionel de Marnier, depois que uma hélice se soltou, rompeu a fuselagem e matou dois. Testemunha de 1945 agora afirma que avião carregava ouro dos nazistas

Vinicius de Moraes

POR MARCEL BONFINI

O aeroporto Santos Dummont amanheceu cheio de curiosos em 25 de outubro de 1945. A população se aglomerava para a chegada do maior hidroavião do mundo, “Lionel de Marnier”, o “Titanic dos Ares”. A monumental aeronave media 57 metros de envergadura, 43 metros de comprimento e 10 metros de altura. Tinha três motores sob cada asa e pesava 75 toneladas. Decolara do sul da França na manhã anterior, numa viagem de 11 horas e três minutos, uma façanha. Os jornais anunciavam o luxo da máquina voadora: doze cabines, banheiros com ducha, bar, salão, restaurante para 16 pessoas, ar-condicionado e sistema de rádio que permitia aos passageiros enviar e receber telegramas em pleno voo.

A viagem apresentava a rota que ligaria a França à América do Sul em voos regulares de três em três semanas. Era um avanço para os transportes de então, quando os passageiros levavam dias para vencer o trajeto de navio. O Lionel de Marnier demonstrava a pujança da aviação francesa, em recuperação após a 2ª Guerra Mundial. O comandante era André Chatel, herói de guerra, a co-piloto era uma mulher, e a tripulação formada por uma elite francesa de mecânicos, radiotelegrafistas e navegadores. No horário esperado, Marnier apontou no horizonte, deu uma volta de exibição sobre o Pão de Açúcar e pousou tranquilamente nas águas da Baía da Guanabara. Uma lancha trouxe sorridentes o comandante e a tripulação ao galpão na Panair, onde haveria uma entrevista. Chatel elogiou o desempenho do avião nos 3400 km sem escalas ou imprevistos. Falava com orgulho da segurança do hidroavião, cuja mecânica era tão arrojada que, mesmo se os três motores de uma asa parassem, teria autonomia para continuar voando.

A parada no Rio promovia a rota e servia para o embarque de jornalistas, cineastas e autoridades que seguiriam à Argentina experimentando o conforto e a segurança da viagem. Entre eles, estava o jovem e recém-aprovado diplomata Vinicus de Moraes, então com 32 anos. Para Vinicius, que acabara de se casar com Tati – a primeira das nove esposas –, a viagem servia mais como diversão do que como missão. Seu primeiro posto seria em Los Angeles no ano seguinte. O poeta despediu-se da mulher e dos filhos e ingressou no enorme equipamento, cuja decolagem foi regada com champanhe. Com 52 pessoas a bordo, o avião partiu rumo a Buenos Aires, deixando para trás a multidão, que acenava impressionada.

Tudo corria bem, até um acontecimento fatídico mudar o curso da história. Após seis horas de voo tranquilo, o que parecia impossível aconteceu. O avião baixou de altitude por causa da nebulosidade, e passageiros viram centelhas saindo de uma asa. Uma hélice se desprendeu e chocou-se violentamente contra o motor central ao lado, que parou de funcionar. Uma pá da hélice partiu-se e colidiu com a fuselagem, abrindo um buraco de dois metros. A enorme peça de metal atingiu dois passageiros. O repórter de “O Globo” Pedro Teixeira morreu na hora; o cineasta francês Emile Ansel teve uma perna e um pé amputados e tampouco sobreviveria.

Com duas vítimas, dois motores a menos e um rombo na fuselagem, o gigantesco avião perdeu sustentação e começou a cair, levando ao pânico os passageiros antes confiantes. Diante da cena grotesca, do sangue espalhado e do rasgo na estrutura, poucos acreditavam sair com vida. Chatel decidiu pelo pouso de emergência. “O tempo do desastre foi de seis minutos: seis terríveis minutos de expectativa da morte”, escreveria Vinicius, em crônica, anos depois. O comandante baixou a aeronave rumo ao primeiro corpo de água que encontrou, e aterrissou numa lagoa com menos de dois metros de profundidade. O maior avião do mundo estava atolado na lama da Lagoa de Rocha, no interior do Uruguai. Radiotelegrafistas enviaram mensagens de socorro, interceptadas pela Marinha, que resgataria os passageiros.

Lionel de Marnier

Vinicius pouco falaria do acidente, apagado em sua biografia, de José Castello. Mas o episódio foi tão impactante que o poeta desenvolveu um trauma de voar que o acompanharia o resto da vida. Ele pretendia escrever um poema épico no qual relataria a experiência. Em 1956, anunciou a intenção de publicar um livro, cujo título seria “O grande desastre do six-motor ‘Lionel de Marnier’, tal como foi visto e vivido pelo poeta Vinicius de Moraes, passageiro a bordo”. A poesia nunca ficou pronta e permaneceu inédita. Seus originais, aos quais FÓRUM teve acesso, estão no acervo do poeta na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio.

São mais de dez páginas com trechos manuscritos e datilografados, alguns incompletos, que descrevem a aventura em versos e prosa poética. Registrou o ambiente de luxo, as mulheres a bordo e o momento do acidente. “Uma perna jazia, calçava sapato e meia. Nada lhe faltava para que constituísse a coisa em si/ A não ser a parte superior acima do joelho.” Num dos trechos em prosa poética, descreveu a carnificina: “Era como se um pintor louco tivesse entrado no pequeno aposento e se pusesse a borrar tudo de rubro. Só então, olhando para os meus pés, EU VI A PERNA.”

O poema incompleto ficou na gaveta, e a queda do avião da Air France foi sendo esquecida até virar estatística. Em 2015, sete décadas depois, uma denúncia bombástica colocou novamente o caso em evidência, acrescentando um novo elemento de drama à história. O filho de um dos moradores que ajudaram no resgate afirmou que o avião levava oficiais do Reich em fuga, misturados à tripulação, e um carregamento de ouro dos nazistas para ser escondido na Argentina. A denúncia provocou um escândalo, no momento em que arqueólogos encontraram em solo argentino edificações subterrâneas, com moedas e porcelana alemã, construídas por nazistas na 2ª Guerra para esconder oficiais.

Ao jornal “El Pais”, o uruguaio José Aldunate mostrou um colete salva-vidas com a suástica nazista – a inscrição “Schwimmweste” e a referência “Anferderz FL 30164-2” – que o pai teria recebido de Chatel. Segundo ele, o comandante revelou que a aeronave transportava lingotes de ouro e refugiados nazistas. O caso exigiria mais investigações. Na época, a Air France era controlada pelo governo da França, e o próprio general Charles de Gaulle, herói da resistência à ocupação nazista, autorizara a viagem. Seria uma ousadia cometer tal conspiração nas barbas da Força Aérea francesa.

Vinicius de Moraes se engajou com entusiasmo aos Aliados contra o inimigo nazista. Como diplomata, ciceroneara o cineasta Orson Welles no Brasil em 1942 no esforço dos Estados Unidos de sensibilizar o Brasil a ingressar ao seu lado na guerra. Também participou de comícios contra o Reich, ao lado do chileno Pablo Neruda. Se o Lionel de Marnier tiver colaborado com os nazistas, Vinicius terá sido uma vítima desavisada e duplamente enganada: tanto pelo anúncio de que o avião jamais cairia quanto pelo propósito subterrâneo da viagem.

O “Titanic dos ares” foi reparado no Uruguai e, um mês depois, seguiu finalmente para a Argentina. Retornou à França, onde permaneceu operando em rotas comerciais. Em 1948, o avião desapareceria sem deixar pistas entre a Martinica e a Mauritânia, na África. Havia 52 pessoas a bordo. Os destroços apareceram no oceano, mas nenhum sobrevivente. Felizmente Vinicius estava longe desta vez. Ficou esclarecido que o avião realmente não era seguro. Resta confirmar se ele foi usado como colaborador do Reich. (Leia no site da AMAERJ trechos inéditos da poesia)

TRECHOS INÉDITOS do poema “O desastre do grande six-motor Lionel de Marnier”:

Eram cinquenta passageiros

Cinquenta eram senão mais

Seis e quarenta eram estrangeiros

Quatro, três, dois um, nacionais.

 

Eram cinquenta aerovidas

Cinquenta eram senão mais

Se arremessando aeromovidas

Em direção a Buenos Aires.

 

Eram cem olhos boquiabertos

Cem olhos eram senão mais

Dedos seriam mil por certo

Dentes então eram milhares.

 

Eram três horas meridianas

Três horas eram ou pouco mais

E não eram só cinquenta a bordo

Eram cinquenta, e um demais.. 

A PERNA

(…) Ali, na cabine contígua à minha, era o sangue por toda a parte. A parede esquerda tinha um rombo da altura de uma porta, por onde entrara a enorme hélice ora jazente retorcida, uma pá enterrada fundo, a outra contra a parede direita. A um canto, jogado, havia um corpo, vazio como um saco. Entranhas vermelhas fluíam de um rombo também, alto como uma porta, aberto ao longo do cadáver. Era como se um pintor louco tivesse entrado no pequeno aposento e se pusesse a borrar tudo de rubro. Só então, olhando para os meus pés, EU VI A PERNA.

Extremamente circunspecta

Jazia a perna. Digo-vos que extremamente circunspecta e desconfiada

Jazia a perna. Digo-vos que extremamente circunspecta, desconfiada e agressiva

Jazia a perna. Uma perna jazia extremamente circunspecta, desconfiada, agressiva e ereta

Entre massas e volumes. Uma perna jazia, calçava sapato e meia. Nada lhe faltava para que constituísse a coisa em si

A não ser a parte superior acima do joelho (…)

Mortos pela hélice