AMAERJ | 08 de novembro de 2018 10:30

Revista FÓRUM: ‘Operação Lava-Jato destruiu o sistema partidário anterior’

‘Acabou a era PT X PSDB e o MDB chegou ao fim’, disse Nicolau | Foto: Laycer Tomaz/Câmara

Jairo Nicolau é cientista político e professor da UFRJ

POR DIEGO CARVALHO, RAPHAEL GOMIDE E SERGIO TORRES

A eleição marcou o fim de um ciclo político brasileiro. Esta é a constatação do cientista político Jairo Nicolau, 54 anos, especialista em sistemas eleitorais e professor titular do Departamento de Ciência Política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Ele considera que os reflexos da Operação Lava-Jato foram fundamentais para a mudança.

“A crise de confiança da sociedade em relação à política tem a ver com a Lava-Jato e a prisão de lideranças importantes. Esses acontecimentos foram minando a confiança dos eleitores nos partidos tradicionais e nos políticos mais conhecidos”, afirmou o especialista, em entrevista à FÓRUM.

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Autor dos livros “História do voto no Brasil” (2002) e “Sistemas eleitorais” (2012), Nicolau sustenta que a democracia brasileira não corre risco, mas alerta para o acirramento político no país. “Minha preocupação para 2019 é de um período de muita instabilidade, esgarçamento das relações sociais e conflitos entre grupos.”

FÓRUM: Quais as particularidades das eleições deste ano?
JAIRO NICOLAU: São três aspectos relevantes: a ascensão do bolsonarismo, o surgimento do nada de um partido de extrema direita no país e o fim de um ciclo de governança da política brasileira que vigorou por 20 anos. Acabou a era PT x PSDB e o MDB chegou ao fim. Este trio comandou a política nacional desde 1994, e perdeu completamente agora. O PT foi muito mal no Sul e no Sudeste, vai ter que fazer uma reflexão do papel que ocupará no país. A eleição marcou o fim de um sistema partidário. Esta é a grande novidade e legado desta disputa.

FÓRUM: O resultado das eleições foi surpreendente?
NICOLAU: A surpresa tem a ver com a nossa expectativa. No Rio, a votação do Wilson Witzel foi uma surpresa para todos, inclusive para ele. Nacionalmente, no final do primeiro semestre, já sabíamos que havia a possibilidade do Bolsonaro passar para o 2º turno com um dos outros candidatos. A grande surpresa foi a força com que ele passou. Não estava esperando a velocidade com que o Bolsonaro conquistou o eleitor do PSDB tradicional, mais moderado, de centrodireita. A forte migração para apoiar o Bolsonaro aconteceu já no 1º turno.

FÓRUM: O resultado é um reflexo das manifestações de 2013?
NICOLAU: Acredito que não. O momento para se expressar politicamente foi nas eleições de 2014. E nada aconteceu. Há uma supervalorização daqueles eventos. Tiveram um efeito claro de reforçar um sentimento antipolítica, mas ficaram circunscritos àquele contexto. Havia uma crítica difusa à classe política, particularmente aos ocupantes de cargos nas prefeituras e governos do Estado. No entanto, um ano depois das manifestações, nenhuma das lideranças migrou para a política e a abstenção não aumentou.

FÓRUM: É um reflexo da Operação Lava-Jato?
NICOLAU: Sim, a Operação Lava-Jato foi muito mais importante para a destruição do sistema partidário anterior do que as manifestações de 2013. A crise de confiança da sociedade em relação à política, que criou esse forte sentimento antipolítica, tem a ver com a Lava-Jato e a prisão de lideranças importantes. Esses acontecimentos foram minando a confiança nos eleitores dos partidos tradicionais e nos políticos mais conhecidos. Não é pouco um país ter um ex-presidente da República, um ex-presidente da Câmara dos Deputados e um ex-governador do segundo maior Estado do Brasil presos simultaneamente. É sintomático desta crise de três anos que afetou muito a percepção da sociedade em relação à política.

FÓRUM: A democracia brasileira corre algum risco?
NICOLAU: Democracia é um arranjo tênue, uma forma de governar em sociedade que tem um paradoxo: você deixa espaço para alguém que quer acabar com você. A democracia tem essa possibilidade. (O líder nazista Adolf) Hitler (1889-1945) chegou ao governo (da Alemanha) por eleições, assim como muitos ditadores. Estamos vendo exemplos de autocracias contemporâneas que se consolidaram, casos da Venezuela, da Turquia, da Hungria e da Polônia. Líderes que chegam pelo voto e culminam as destituições democráticas. É um problema inerente à democracia, um sistema que deixa inclusive disputar o poder forças que querem acabar com ela. As democracias sempre vão viver este dilema, mesmo as democracias tradicionais. Na Alemanha e na Suécia há democracias muito estáveis, países que resolveram seus problemas sociais mais graves, conquistaram um nível de bem -estar consolidado e são liderados pelo extrema-direita também. Acredito que o Brasil é muito complexo do ponto de vista da sua demografia e sociologia, tem uma classe média gigantesca, uma sociedade civil muito mobilizada, jornais com grande influência, redes, associações e uma oposição forte. As Forças Armadas se profissionalizaram e se recusam a participar mais ativamente da política. Esses são pontos positivos. Ainda temos hoje uma rede de instituições de controle no Brasil, o Judiciário se fortaleceu, assim como o Ministério Público e agências de todo o tipo, que mostram que o país tem uma rede muito sólida. Por outro lado, o que mais assusta as pessoas é que a biografia, o comportamento e as palavras do Bolsonaro não são de completo compromisso com a ordem democrática.

FÓRUM: Que análise faz do presidente eleito e do próximo governo?
NICOLAU: Bolsonaro tem uma visão ambígua em relação a temas como liberdade de expressão e visões diferentes da política. Ele falou várias vezes sobre como tratará a oposição e a imprensa. Preocupa o pouco compromisso com as instituições que ele mostra ter. Agora, isso não é condição suficiente para haver um golpe, uma quebra da ordem democrática. Estamos diante de um segmento da opinião pública da extrema direita que está muito ativo nas redes sociais, algo que não existia. Acredito que devemos viver um período de muita turbulência e instabilidade. Vamos imaginar que o Congresso rejeite um projeto e que ele vá a público dizer que o Congresso representa o atraso, a velha ordem, e que a população tem que ir para a rua. Cenários como este podem gerar crises constantes. Ele não vai dar um autogolpe, não é o cenário esperado. O esperado é um governo de crises desse tipo, que pode minar a confiança das pessoas na democracia. Minha preocupação para 2019 é de um período de muita instabilidade, esgarçamento das relações sociais e conflitos entre grupos.

FÓRUM: Houve muita violência pelo país durante a campanha eleitoral. Há risco de uma conflagração social?
NICOLAU: Estamos em um ambiente de grande escalada da violência. O presidente precisa dar sinais claros que vai investigar e punir para que não seja criado um ambiente de intolerância e agressão recíproca. Se o presidente fica em silêncio ou manda mensagens ambíguas, começamos a ter grupos paramilitares operando no país. E provavelmente também com reações do outro lado, dividindo ainda mais grupos de extrema-direita, extrema-esquerda, anarquistas e ultraesquerdistas. Desta forma, poderiam acontecer atentados. O
Brasil já teve uma experiência de terrorismo de esquerda nos anos 60 e 70. Não estou dizendo que isso vai voltar, espero que não. O problema é que a violência de um extremo gera reação do outro. O conflito no Brasil sempre foi parlamentar e das redes sociais. Em comparação a outros países conflagrados, como Venezuela, Argentina e Turquia, estamos muito distantes. Não temos tido a prática da violência política, sempre tivemos uma certa civilidade. Atitudes hostis, agressões e esfaqueamento preocupam. Não são ações organizadas, são espontâneas, descoordenadas, mas algo deve ser feito. Os camisas pretas na Itália fascista e o grupo SS na Alemanha surgiram assim, como grupos da sociedade que queriam fazer justiça com as próprias mãos. O presidente precisa criar uma força-tarefa e coibir com palavras e ações de ministérios e da Polícia Federal para investigar e punir os responsáveis.

FÓRUM: Neste ponto, foi uma eleição muito diferente em relação a de 2014?
NICOLAU: A disputa entre Dilma e Aécio é um piquenique diante do que vimos na campanha deste ano. A virulência de parte a parte no 2º turno, sobretudo na campanha da Dilma, e a crise que seguiu em 2015 dava a impressão que estávamos em um ambiente muito grave. Mas o conflito em 2018 mudou de patamar, ficou ainda mais virulento. Depois da redemocratização, é uma novidade a existência desses grupos paramilitares, que perpetram ações violentas em todo o país.

FÓRUM: Por que aconteceu essa guinada tão forte à direita? O perfil do eleitorado brasileiro mudou? Ficou mais conservador?
NICOLAU: Já tínhamos percebido isso na bancada de 2014, uma inflexão mais conservadora no país com a eleição do Bolsonaro, Celso Russomano, Marco Feliciano e outros candidatos. A bancada conservadora cresceu muito naquela eleição. Mesmo com a vitória da Dilma, a Câmara foi comandada pelo Eduardo Cunha, que inventou o centrão. Tivemos um movimento de reforço da direita parlamentar mais ativa. Há uma clara mudança na opinião pública de alguns anos, existe uma enorme direita no país com intelectuais, artistas, escritores, blogueiros, jornais e movimentos como o MBL (Movimento Brasil Livre). No Brasil, quem não era de esquerda, não era nada, só se definia contra a esquerda. Não tem nem três eleições que vi, pela primeira vez, um candidato se autodeclarar de direita. Hoje, muitos se definem assim. Neste ponto, há uma grande contribuição do conservadorismo evangélico, grupos mais conservadores da Igreja Católica, alguns militares, intelectuais, uma classe média desgostosa da experiência do PT e uma elite política tradicional. A direita cresceu, mas não esperava que passasse dos 20 pontos na eleição. Foi uma surpresa também ver o PSL com a maior votação para a Câmara, refletindo o bolsonarismo.

FÓRUM: Aparentemente houve menos dinheiro nas campanhas desta eleição. O marketing eleitoral perde força e é de alguma maneira substituído pelas redes sociais e WhatsApp. Esse foi um dos grandes fatores para a definição do pleito?
NICOLAU: O Bolsonaro soube lidar muito bem, com sabedoria, com os instrumentos das redes sociais, particularmente o WhatsApp. Ele fez isso com muita eficiência. Há uma mudança tecnológica que se associou a uma transformação da opinião pública no Brasil. Por outro lado, a esquerda usou as velhas formas de fazer política, a rua, o comício e a tentativa de persuasão pelas redes mais convencionais. A esquerda não soube lidar tão bem com essa mudança, que já tínhamos visto na eleição municipal de 2016 no Rio e na greve dos caminhoneiros, uma forma mais horizontalizada e descentralizada de difusão da informação. O Bolsonaro capturou com muita eficiência o novo momento do país.

FÓRUM: Qual foi o papel do antipetismo na eleição?
NICOLAU: O antipetismo, sem dúvida, foi cultivado como tema central. Assim que o Haddad começou a subir nas pesquisas, a rejeição a ele também subiu. No início, claramente havia uma leve rejeição ao PT de alguns segmentos da direita. Mas foi a campanha do Bolsonaro que aprofundou o antipetismo. Não existia um antipetismo tão enfático de acordo com as pesquisas de opinião. Isso foi cultivado com muita eficiência ao longo da campanha do Bolsonaro. Se antes, em uma escala de zero a dez, o antipetismo estava em três, depois disso chegou a nove. Esse crescimento se deve a campanha do Bolsonaro. Por outro lado, no 2º turno, foi a vez de o PT bater e cultivar o antibolsonarismo. O PT pode não ter diminuído o antipetismo, mas fez surgir o sentimento do antibolsonarismo radical.

FÓRUM: Houve mudanças importantes nas composições do Senado e da Câmara dos Deputados. O que o Brasil pode esperar do novo Parlamento?
NICOLAU: É difícil saber o que esperar. O Parlamento terá um componente diferente, quase um quinto dos eleitos nunca havia concorrido a nada. É uma novidade. Muitos precisarão de meses para conhecer a atividade parlamentar. O Parlamento perdeu muitos líderes importantes. Quando um Miro Teixeira e um Chico Alencar saem, é uma perda, independentemente da posição política, porque são políticos que construíram uma vida conhecendo os procedimentos decisórios, o ritual da Casa e o regimento interno. Às vezes, a ideia da renovação é levada ao extremo, mas renovação por si só não quer dizer nada. Queremos renovar, mas precisamos escolher boas pessoas para colocar no lugar de quem não presta. Talvez tenhamos perdido políticos tradicionais que operaram bem como legisladores e trocado por pessoas que nunca fizeram política e são desconhecidas do grande público. Precisamos esperar, a fragmentação partidária é gigantesca e teremos um presidente ocupando um polo muito extremado em relação ao Congresso. O Parlamento é, na maioria, de direita, não de extrema-direita. A bancada não é PSL, continuam os deputados do DEM, do Podemos, do PTB e do PSDB, políticos comuns e que podem achar a agenda do Bolsonaro muito extrema.

FÓRUM: Que papel o Judiciário brasileiro representará nos próximos quatro anos, levando-se em conta que o governo deverá ter oposição acirrada?
NICOLAU: O Judiciário deverá ser uma força de contenção a eventuais exageros da Presidência e do Congresso.

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