POR MARCEL BONFINI
O lado artístico pouco conhecido do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade: sua pena também era precisa nas caricaturas
Um lado pouco conhecido do poeta Carlos Drummond de Andrade era sua atividade como caricaturista diletante. O poeta gostava de rabiscar em papéis avulsos enquanto conversava ao telefone ou quando estava maquinando internamente um poema, e deste exercício quase gratuito resultou uma produção extremamente interessante. Drummond retratou amigos como Manuel Bandeira, Gustavo Capanema, Lygia Fagundes Telles, Pedro Nava, Emílio Moura, a filha Maria Julieta e outros. Especializou-se, no entanto, em sua autocaricatura, que repetiu em dezenas de ocasiões, variando sempre em torno das mesmas características: a calva longa, os olhos mínimos atrás de grandes óculos e o nariz pontiagudo. São desenhos que revelam o talento do poeta em captar os traços essenciais de uma fisionomia, e testemunham seu frustrado sonho juvenil de um dia trabalhar como caricaturista.
Drummond não dava grande valor a esta produção, e uma boa parte dela foi destruída ou perdida. Restaram alguns desenhos espalhados em casas de amigos, parentes e no acervo do poeta na Fundação Casa de Rui Barbosa. No fim de 2016, uma parte deles foi reunida em um livro de formato digital, publicado pela plataforma e-galáxia, com o título “Drummond caricaturista”. O livro foi organizado pelo poeta e pesquisador Eucanaã Ferraz, que estuda a obra de Drummond, e neste trabalho procura relacionar o traço do escritor com algumas características de sua produção poética. Tanto nos desenhos como nos poemas, Drummond volta-se para si mesmo, retratando-se sempre de maneira imperfeita, gauche e eventualmente caricatural. Em seus primeiros livros, “Alguma poesia” e “Brejo das almas”, na maioria das vezes ele se limita a registrar os sentimentos e os fatos do cotidiano, sem grandes divagações, em uma atividade muito parecida com a do desenhista.
O interesse de Drummond pelo desenho é anterior ao da escrita. No documentário “O fazendeiro do ar”, dirigido pelo escritor Fernando Sabino, o poeta conta que desde criança, antes de aprender a ler, tinha uma fascinação visual pela forma das palavras. Mesmo sem compreender o seu sentido, o que o aproximou inicialmente das revistas, dos jornais e dos livros foi o fascínio pelo formato das letras. “O papel com desenho, com riscos, com letras, me causava uma impressão muito forte. Tudo o que eu fiz em matéria de literatura, veio desse primeiro contato”, disse.
Na juventude, suas leituras prediletas eram revistas como O malho e Careta. Tinha uma coleção de cada uma destas publicações, que reuniam alguns dos principais caricaturistas da época, como Álvarus e J. Carlos – ambos se tornaram artistas de sua admiração. “Ele conhecia bem a obra de todos eles e comentava sempre. Entre outras coisas, me contou que antes de se imaginar poeta, sonhava em ser caricaturista”, diz o amigo e desenhista Ziraldo.
Nas crônicas diárias que escrevia para o Jornal do Brasil, volta e meia abordou o tema. Em 1971, escreveu: “O caricaturista é uma pessoa que nos ajuda a viver, manifestando o cômico subjacente no trivial, no grave ou no dramático. Rimos dos outros sem desconfiar que rimos de nós mesmos e da condição humana”. Em seu diário pessoal, publicado posteriormente no livro “O observador no escritório”, ele falava de maneira jocosa do sonho frustrado de ser desenhista: “Seria ótimo ter nascido caricaturista. Na rua, ao ver desconhecidos, ilustrações: arq. pessoal costumo identificá-los: ‘Este foi desenhado pelo Kalixto. Esta é puro J. Carlos. Olha ali a gordona do Raul. Quem inventou esse foi Ziraldo.’ Penso num museu de caricatura, que não sei se existe no exterior, e que eu visitaria sempre, se existisse no Rio”.
Drummond começou a desenhar como um passatempo. Meticuloso, costumava atirar ao lixo o resultado desta produção, para que não restassem provas da aventura. Seu neto, Pedro Graña Drummond, foi o primeiro a dar valor à atividade. Chegou a resgatar alguns dos desenhos já na lixeira. Fazia isso escondido, pois sabia que o avô não concordaria em preservá-los. O bibliófilo Plínio Doyle também salvou algumas destas caricaturas da destruição. Todos os sábados ele promovia em sua casa um encontro de intelectuais que ficou conhecido como “sabadoyle”, e do qual Drummond tomava parte. Entre conversas e leituras, o poeta costumava deixar algum rabisco no papel. Plínio, um colecionador compulsivo, guardava cada garatuja como uma preciosidade, e este conjunto ficou preservado na Fundação Casa de Rui Barbosa.
Por vezes, o resultado da diversão saía com uma qualidade superior, e Drummond tinha consciência disso. Nestes casos, dava o desenho de presente ao amigo caricaturado, como fez com Lygia Fagundes Teles e Lélia Coelho Frota, numa espécie de brincadeira carinhosa. O perfil dentuço de Manuel Bandeira, facilmente reconhecível apenas de olhar, chegou a ser publicado em livro com a anuência do poeta. No caminho inverso, o rosto calvo e alongado de Drummond, facilmente caricaturável, foi alvo de dezenas de artistas profissionais ou amadores como Di Cavalcanti, Gilberto Freyre, Augusto Rodrigues, Álvarus, Chico Caruso, Luís Jardim, Lan e Luís Martins. O poeta tinha proximidade com o universo do desenho e das artes plásticas, o que era visível em suas crônicas e poemas, mas também nas rodas de amigos que frequentava.
Era próximo de pintores como Cândido Portinari e Enrico Bianco, e de escritores que se aventuraram com muito talento pelo campo das artes visuais, como Lúcio Cardoso e Pedro Nava. É possível que, diante deste ciclo de amigos que se defendia tão bem no traço, Drummond sentisse ainda mais pudores em exibir ao público seus desenhos de colegial. Esta produção, no entanto, merece interesse não apenas pela eventual qualidade artística que possa ter, mas por descortinar a personalidade daquele que foi um dos maiores poetas do Brasil: por detrás de figura sisuda e arredia, havia um caricaturista gozador.