AMAERJ | 14 de julho de 2017 17:45

Revista FÓRUM: Cancioneiro Gullar

Poeta maranhense compôs com Caetano, Milton, Fagner e Paulinho da Viola

Por Sérgio Torres

A faceta menos conhecida de Ferreira Gullar, morto aos 86 anos em dezembro, é a que certamente mais o aproximou do grande público. Além de poeta, escritor, artista plástico, roteirista, crítico de arte, ensaísta, cronista e dramaturgo, o maranhense Gullar escreveu versos para melodias compostas por parceiros ilustres. Muitas das canções letradas por ele fizeram sucesso nas vozes consagradas de Caetano Veloso, Maria Bethânia, Paulinho da Viola, Edu Lobo, Fagner, Milton Nascimento, MPB-4, Ney Matogrosso e Nara Leão.

Nascido em São Luís em 10 de setembro de 1930, José Ribamar Ferreira tornou-se Ferreira Gullar em 1948, um ano antes de lançar, ainda no Maranhão, seu primeiro livro de poesias, “Um Pouco Acima do Chão” –renegado, tempos depois, pelo autor, que o considerou “obra imatura”.

A vinda para o Rio, em 1951, marcou o início do envolvimento de Gullar com o que havia de mais importante nos meios literário e intelectual brasileiro à época. Três anos depois, lançou “A Luta Corporal”, que o aproximou do grupo concretista radicado em São Paulo, sob a liderança dos irmãos poetas Augusto e Haroldo de Campos.

A seguir, veio o rompimento com a poesia concreta e a participação de Gullar em políticas sociais, especialmente a partir de 1962, quando ingressou no CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE (União Nacional dos Estudantes). Foi aí que surgiram as primeiras letras para as músicas engajadas do período.

Editado em 2015 pela Topbooks, o livro “Cancioneiro” reúne 13 letras escritas por Gullar para canções. Na orelha da publicação, o ensaísta, poeta e crítico literário Antonio Carlos Secchin, fã de Ferreira Gullar e seu colega na ABL (Academia Brasileira de Letras), escreve que as letras “portam a mestria e a chancela de qualidade do autor”.

A primeira edição teve tiragem limitada. Foram apenas 300 exemplares, numerados de 1 a 300. Coube a Secchin a apresentação e a organização do livro, enriquecido por belas ilustrações do artista plástico Ciro Fernandes. Os primeiros 50 exemplares trouxeram as assinaturas de Gullar e do ilustrador.

Ferreira Gullar aventurou-se pela primeira vez a versar melodias em 1966, para a peça “Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come”, que escreveu em parceria com o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha (1936-1974). Os autores fizeram as letras, musicadas pelos compositores Geni Marcondes (1916-2011) e Denoy de Oliveira (1933-1988). “A Canção do Bicho”, dos quatro autores, fez sucesso nas interpretações de Nara Leão e do grupo vocal MPB-4.

Dois anos depois, a pedido da amiga Maria Bethânia, seu irmão Caetano Veloso compôs “Onde Andarás”, com letra de Ferreira Gullar.

“Essa parceria não nasceu de uma relação minha com Caetano. Foi Maria Bethânia quem me pediu se eu gostaria de escrever para ela duas letras de fossa, de dor-de-cotovelo, que ela queria gravar no seu disco de estreia. Então fiz e entreguei a ela duas letras. Uma é ‘Onde Andarás’. A outra é um poema, também do mesmo livro, que adaptei para servir como letra, porque como poema era muito longo. Mas Caetano só musicou uma delas”, contou Gullar ao ser entrevistado em 2008.

Nas ocasiões em que falou sobre seu trabalho como compositor popular, Gullar procurou deixar claro que não se sentia muito confortável com a tarefa. “Em geral, sou levado a escrever por alguma coisa que me espanta, que me surpreende, que me comove. Pegar uma música e saber que sentido tem aquilo… Eu não sei que sentido tem aquela música. A música tudo bem, pela melodia a gente se guia, mas o que vou escrever? Como é que eu vou transformar aquilo em palavras? Eu não consigo, é muito difícil. Isso é coisa para Caetano, Chico [Buarque], eles entendem disso. (José Carlos) Capinan [parceiro de Gilberto Gil, Caetano, Tom Zé e Paulinho da Viola, entre muitos artistas de renome] tem uma experiência de letrista que não tenho, é um outro departamento”, relatou Ferreira Gullar em entrevista.

Após a volta do exílio [esteve na Rússia, Chile, Peru e na Argentina], em 1977, ainda durante o regime militar, o poeta intensificou a relação com a música. Inicialmente, colocou versos em “Trenzinho do Caipira”, parte das “Bachianas nº 2”, clássico do maestro e compositor erudito Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Gullar aproveitou trecho de seu “Poema Sujo”, o livro lançado na década de 70 e apontado por críticos como a obra-prima do autor.

Edu Lobo gravou a canção em 1978, no disco “Camaleão”. Tornou-se um sucesso. No sepultamento de Gullar no mausoléu da ABL, ano passado, no cemitério São João Batista (zona sul do Rio), amigos, parentes e fãs cantaram o “Trenzinho”, como última homenagem ao poeta.

Raimundo Fagner foi o principal parceiro musical de Gullar. Compuseram juntos “Traduzir-se”, “Me Leve”, “Contigo”, “Rainha da Vida” e “Menos a Mim”. Muitos não sabem, mas é de Gullar a versão em português de “Borbulhas de Amor”, canção do compositor dominicano Juan Luis Guerra, megassucesso do cantor cearense.

Fagner conta que conheceu Gullar por intermédio do poeta e compositor Vinícius de Moraes (1913-1980). Vinícius disse a Fagner que o apresentaria ao maior poeta brasileiro. “Foi engraçado quando Vinicius me contou isso, antes de Gullar chegar ao encontro. Olhei para ele surpreso e disse: ‘Mas não é você o maior poeta brasileiro?!’. Ele riu e falou que não, era Ferreira Gullar”, disse Fagner.

Com Milton Nascimento, Ferreira Gullar compôs “Bela Bela” e “Meu Veneno”. “Bela Bela” é também um trecho do “Poema Sujo”. Foi musicada por Milton em 1979, que a gravou dois anos depois, no disco “Caçador de Mim”. “Meu Veneno” é composição de 1990. Milton a registrou em “Angelus”, álbum de 1993.

A compositora mineira Sueli Costa era muito amiga de Gullar e foi parceira dele em três músicas, com melodia dela e letras do poeta. Duas permanecem inéditas: “Diferença” e “Menina Passarinho”. “Escuta, Moça” foi gravada por Sueli há 33 anos, no vinil “Íntimo”. Em entrevista reproduzida no site da parceira, Gullar a enaltece: “Lembro-me de Sueli Costa sempre com muito carinho, na época em que estivemos mais próximos. Somos parceiros, ela deu beleza a uma letra que fiz a seu pedido. Sueli, artista verdadeira, pessoa adorável”, disse Gullar.

O carioca Paulinho da Vila é parceiro de Gullar na canção “Solução de Vida”, de 1996, um dos destaques do disco “Bebadosamba”. O músico compôs duas melodias para os versos de Gullar. Da primeira, não gostou. “A melodia não estava acompanhando o sentido irônico da letra. Não gostei do resultado. Depois que gravei, fiz outra música. Foi essa segunda versão que entrou no disco”, lembra.

Ele ainda tem músicas em parceria com Zeca Baleiro, Adriana Calcanhotto, Murilo Alvarenga, Raul Ellwanger e Wagner Tiso, entre outros artistas. O bissexto compositor Ferreira Gullar, afinal, não é tão bissexto assim.

Leia aqui a íntegra da revista Fórum.