* Sidney Rezende
Ela é séria, aplicada, apaixonada pelo que faz e há 12 anos é a Juíza titular da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro. Esta carioca que será retratada aqui tem pouco mais de 30 anos, mas parece menos. Bronzeada, exibe uma tatuagem que circunda o braço, e pode ser confundida com qualquer outra mulher da sua geração de Ipanema, onde mora.
Juíza e professora da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, Vanessa Cavalieri é casada, mãe dedicada, mas já se dispôs a trabalhar longe do marido e dos filhos quando aceitou exercer sua profissão em Nova Friburgo, região serrana. A jovem magistrada viu ali a oportunidade perfeita para materializar seus ideais de Justiça.
Foi tão bem-sucedida que ganhou uma promoção e hoje comanda um grupo de colegas que, diariamente, convive com a dura realidade dos 4 mil menores infratores num dos estados com a maior incidência de crimes do país.
A sua aflição hoje é constatar que, se nada for feito imediatamente, o futuro dos jovens que trilham o caminho do crime será incerto. As saídas são educação, retomada da autoridade dos pais, planejamento familiar e a profissionalização.
“A evasão escolar, principalmente no ensino fundamental, é preocupante. Quando o menino entra para o tráfico de drogas, é de 100%. O abandono da escola no Brasil atinge 70% entre os jovens infratores. Na Eritreia, é 65%”, desabafa. A Eritreia, oficialmente Estado da Eritreia, é um país muito pobre localizado no “Chifre da África”, e faz fronteira com o Sudão, a oeste, a Etiópia, ao sul, e Djibuti, ao sudeste.
Convidada para ser a palestrante do debate “Aprendizagem Profissional: Alternativas e Perspectivas para a Juventude”, organizado pelo CIEE do Rio de Janeiro, a Dr. Vanessa Cavalieri arrancou suspiros da plateia que compareceu ao auditório da Academia Brasileira de Letras (ABL). Mas o seu charme pessoal deu lugar a um discurso consistente, focado e rico de exemplos dilacerantes de uma realidade que a classe média em geral desconhece.
Com um discurso nada paternalista, Vanessa Cavalieri costurou uma realidade nua e crua. Foi um soco no estômago. Foi aplaudida intensamente após uma sucessão de exemplos do seu cotidiano. “Eu contarei aqui o que acontece todos os dias na minha sala de audiência”, prometeu. E cumpriu.
“Reconheço a existência da ‘onipotência juvenil’. Eles pensam que nada de mau vai lhes acontecer, por mais que os mais velhos alertem. Um jovem pobre vê o chefe da boca do tráfico com armas, cordões de ouro e cercado de mulheres bonitas e eles querem ser iguais a ele. A mãe que, em geral, trabalha fora e ganha pouco, tem que sustentar uma família com 5, 6…10 filhos. Ela leva 4 horas para chegar em casa. Ela nem sabe por onde o filho anda e nem tem ideia que ele possui um tênis Nike ou um agasalho de marca, conseguido por pequenos serviços ao tráfico. Mas o jovem tem estas necessidades… E quando entra no tráfico, ele o faz para ter acesso a estes bens…”, diz ela.
“Quando o jovem é preso pela primeira vez – e a punição é de no mínimo 6 meses -, ele começa a dar valor à liberdade. Ele volta para a comunidade e avisa aos traficantes que não quer mais aquela vida. O traficante diz que não é bem assim, e que, primeiro, ele terá que ressarcir o equivalente em dinheiro à droga que foi apreendida pela polícia, quando ele foi apreendido. O valor é de 800, 900 reais. Ele não tem. Aí, só lhe resta duas alternativas: trabalhar de ‘graça’ por 30, 60 dias. Ou, o que é mais grave, o chefe do morro diz que ele pode roubar um carro e aí ‘ficaria tudo certo’. O jovem aceita, e muitas vezes acha até fácil o trabalho. O que ele não percebe é que aí é empurrado para um caminho de difícil retorno”, conta.
Um caso assim aconteceu há pouco tempo. A Justiça do Rio condenou à internação definitiva os dois adolescentes acusados de matar o médico Helder Dias da Costa Tomé Júnior, de 35 anos, durante uma tentativa de assalto em Irajá, na Zona Norte, em 8 de janeiro. O prazo da internação varia de seis meses a três anos.
O menor que atirou no médico pretendia com o assalto levantar dinheiro para pagar os traficantes e sair do crime. No dia, nervoso, sem hábito do uso de arma de fogo, disparou por engano e tornou-se assassino.
Num outro caso, um adolescente foi preso e, na audiência, a mãe do jovem pediu a palavra e disse que “ela é que era culpada” pelo ocorrido. A juíza travou um diálogo corriqueiro, mas tenso:
– Por que a senhora diz isso?
– Porque eu tenho 10 filhos e um deles é especial. Nós não tínhamos nada para comer em casa. Eu mostrei a dispensa para as crianças. O meu filho, que hoje está aqui preso, me disse: “Pode deixar, mãe, vou resolver isso”.
O que a mãe não esperava, segundo o relato dela, é que o auxiliar de pedreiro iria tentar dinheiro para comprar mantimentos por meio de um assalto.
– Eu pensei que ele fosse fazer um trabalho…, balbuciou a senhora envergonhada.
Num outro caso, uma moça queria ir ao show de Diogo Nogueira, mas custava R$ 200 e ela não tinha. Ela pegou o dinheiro da entrada emprestado com traficantes que atuam no bairro onde mora e foi ao show. Só que ela tinha que pagar. Como fazer?
A jovem pegou uma arma de brinquedo e tentou assaltar um taxista. Não deu certo. E foi presa.
Na delegacia, ela escreveu uma crônica em que confessa ter feito a “pior escolha do mundo”. E hoje, apreendida, pensa em reintegrar-se. Ela quer uma oportunidade.
Um outro rapaz roubou um pedestre e foi preso. Quando perguntado por que fez isso, ele confessou que “não suportava mais a madrasta”. E o seu sonho era morar sozinho. Ele queria alugar um apartamento. E o único meio de conseguir dinheiro rápido para isso era o crime.
– Mas por que você não gosta da sua madrasta?, perguntou a juíza.
Ele respondeu candidamente:
– Porque ela me obrigava a lavar pratos.
Rápida, Vanessa Cavalieri deu um xeque-mate:
– E quando você morar sozinho, quem lavará seus pratos?
O jovem riu.
Num outro exemplo, a juíza indagou a um jovenzinho:
– Quem foi que levou você a ser apreendido e agora a cumprir pena num centro de capacitação?
Ele respondeu: “A senhora”.
A titular da infância e Juventude disse: “Não. Não fui eu. Foi você com as suas escolhas”.
Há casos em que o jovem estuda, tem família estruturada e mesmo assim cai no crime.
Certa vez, uma mãe disse:
– Doutora, ele tem tudo e não precisa roubar. Não entendo esse comportamento.
Envergonhado, o rapaz virou-se para a juíza:
– Eu posso abraçar minha mãe?
Noventa por cento dos jovens infratores são do sexo masculino. No Rio, são 900 rapazes e 70 moças. Quase sempre, elas trilham esse caminho solidárias aos namorados. E acabam se dando mal.
No estado do Rio, existem 3 mil medidas socioeducativas sendo cumpridas.
Curiosamente, existem 50 mil empresas com condições de dar oportunidade para aprendizes entre 14 e 17 anos. Mas não dão. Uma delas, segundo o auditor-fiscal do Trabalho, membro da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, Ramon Santos, prefere ser multada todos os anos do que empregar um menor infrator que já tenha cumprido sua pena.
Mas qual a saída, além da profissionalização?
A juíza Vanessa Cavalieri é entusiasmada com o Núcleo de Justiça Restaurativa que já existe em alguns lugares do Brasil e ainda não no Rio de Janeiro. Apesar de ser um modelo adotado há 30 anos na Nova Zelândia, por aqui, uma novidade.
É uma nova forma de reparação do dano causado por menores infratores. Funciona assim: vítima e criminoso sentam numa mesma mesa e ambos, com a ajuda de um moderador, entram em acordo de como o causador do transtorno pode ressarcir os prejuízos.
Apesar de muitos acharem que isso não funcionaria no Brasil, a grande novidade é que todos os casos em que o modelo foi adotado se ouve da vítima: “Eu quero fazer algo por este garoto para que ele saia da dura realidade em que vive”.
Para não pairar dúvidas, a juíza Vanessa Cavalieri não passa a mão na cabeça dos que violam a lei e nem é branda nas suas sentenças. Apenas, uma cidadã preocupada para achar um caminho que devolva aos jovens de famílias pobres um rumo que não seja do crime.
Fonte: Sidney Rezende