A revista eletrônica Consultor Jurídico (ConJur) publicou, neste domingo (6), o artigo do presidente da Associação dos Magistrados do Paraná (Amapar), Frederico Mendes Junior, sobre o requerimento da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) para modificar a jurisdição eleitoral. O magistrado afirma que a alteração não tem qualquer embasamento legal e somente trará prejuízo à sociedade brasileira.
Leia abaixo o artigo na íntegra:
Incluir juízes federais na Justiça Eleitoral não tem embasamento legal
Recentemente, a Associação dos Juízes Federais do Brasil requereu ao Tribunal Superior Eleitoral a alteração de Resolução 21.009/2002, visando a modificar, pela via administrativa, a regra constitucional que estabelece que a jurisdição eleitoral de primeiro grau é prestada pelos juízes de Direito. A alteração não tem qualquer embasamento legal e somente trará prejuízo à sociedade brasileira.
A Constituição da República estabelece no art. 121 que “lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais”. Deixa claro que a jurisdição eleitoral em primeiro grau é prestada pelos juízes de Direito, isto é, os magistrados de primeiro grau das Justiças dos Estados, cabendo à legislação complementar disciplinar apenas quais dos juízes de Direito exercerão a competência eleitoral e em que termos.
O art. 11 da Lei Orgânica da Magistratura, por sua vez, dispõe que “os Juízes de Direito exercem as funções de juízes eleitorais, nos termos da lei”. Prevê, ainda, o art. 32 do Código Eleitoral que “cabe a jurisdição de cada uma das zonas eleitorais a um juiz de direito em efetivo exercício e, na falta deste, ao seu substituto legal que goze das prerrogativas do Art. 95 da Constituição”.
Apesar da clareza das regras, a Ajufe propõe que a jurisdição eleitoral em primeiro grau passe, por ato administrativo, a ser exercida também pelos juízes federais. Argumenta que a Constituição, ao mencionar juiz de Direito, não se referiu aos juízes dos Estados, pretendendo também abranger os juízes federais. Chega ao despropósito de sustentar que a melhor interpretação da Constituição não é a que circunscreve o conceito de ‘juiz de direito’ aos integrantes da magistratura estadual; que o juiz federal é juiz de Direito, ou seja, que, na expressão “juiz de Direito”, estão inseridos os juízes federais togados e excluídos os juízes classistas, de paz ou leigos.
Ora, a Constituição usa a expressão juiz de Direito para os juízes dos Estados, e a expressão juiz federal para aqueles magistrados que integram a Justiça Federal na Justiça da União. Tanto é assim que, ao definir a composição dos Tribunais Regionais Eleitorais, em seu art. 120, §1º, I, estabelece:
Art. 120 (…)
§ 1º – Os Tribunais Regionais Eleitorais compor-se-ão:
I – mediante eleição, pelo voto secreto:
a) de dois juízes dentre os desembargadores do Tribunal de Justiça;
b) de dois juízes, dentre juízes de direito, escolhidos pelo Tribunal de Justiça;
II – de um juiz do Tribunal Regional Federal com sede na Capital do Estado ou no Distrito Federal, ou, não havendo, de juiz federal, escolhido, em qualquer caso, pelo Tribunal Regional Federal respectivo;
III – por nomeação, pelo Presidente da República, de dois juízes dentre seis advogados de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Tribunal de Justiça.
Quando o texto pretende se referir aos magistrados da Justiça Federal, faz uso das expressões juiz federal, ou, em se tratando de magistrado de segundo grau, juiz do Tribunal Regional Federal. Inexiste na Constituição ou na legislação nacional dispositivo em que os juízes federais são denominados juízes de Direito, tampouco há qualquer norma afirmando que a expressão juiz de Direito não se refere aos Juízes dos Estados.
A Lei 5.010/1966, que organiza a Justiça Federal de primeira instância, em nenhum momento trata os juízes federais como juízes de Direito. A Constituição optou por atribuir a jurisdição eleitoral aos magistrados das Justiças dos Estados por força do pacto federativo, que confere autonomia aos Estados (capacidade de auto-organização e normatização própria, autogoverno e autoadministração).
Aliás, a primazia dada à Justiça dos Estados no exercício da jurisdição eleitoral resulta clara quando se observa a restrição do exercício da Presidência e da Vice-Presidência dos Tribunais Regionais Eleitorais aos desembargadores dos Tribunais de Justiça, consoante artigo 120, §2º, inclusive em detrimento do juiz do Tribunal Regional Federal, que desempenha suas funções no mesmo grau de jurisdição dos desembargadores.
Não bastante, a Constituição também atribuiu aos Tribunais de Justiça – e não aos Tribunais Regionais Federais – as funções de indicação dos Juízes de Direito que compõem os Tribunais Regionais Eleitorais (art. 120, §1º, I, “b”), bem como a indicação dos advogados que compõem aquela corte (art. 120, §1º, III)
A prevalecer o argumento da Ajufe de que juízes federais são juízes de Direito, também deveriam ser reconhecidos como juízes de Direito os juízes do Trabalho e os juízes militares, já que também não são juízes de paz, classistas ou leigos.
A pretensão apresentada nos autos de pedido administrativo 359-19.2015.6.00.00 já foi rejeitada pelo Tribunal Superior Eleitoral no ano de 2011:
Jurisdição e competência eleitoral. Exercício da jurisdição eleitoral de primeiro grau. Justiça Estadual ou Justiça Federal. Juízes de direito. Pretensão ao exercício da jurisdição eleitoral de primeiro grau por juízes federais. Caráter federal e nacional da Justiça Eleitoral. Designação, expressa na Constituição, de juízes de direito escolhidos pelos Tribunais de Justiça estaduais para a composição dos Tribunais Regionais Eleitorais. Participação dos Juízes Federais na composição dos Tribunais Regionais. Interpretação razoável de que os juízes de direito mencionados são os Juízes Estaduais, valendo essa inteligência para os Tribunais Regionais assim como para a Justiça Eleitoral de primeiro grau. Exclusão parcial dos Juízes Federais que se revela compatível com o regime e o sistema constitucional eleitoral. Pedido indeferido, sem prejuízo das eventuais proposições da Comissão de Juristas constituída pelo Senado Federal para a elaboração de anteprojeto de Código Eleitoral. (TSE – Petição nº 332-75.2011.6.00.0000 – Classe 24 – Brasília – DF – Relator: Min. Gilson Dipp – Data da decisão: 29/03/2012 – Trânsito em Julgado: 20/05/2015 – DJE nº 86/2012 – P. 359).
A Justiça Eleitoral tem se notabilizado por uma prestação jurisdicional célere e eficiente. O próprio Conselho Nacional de Justiça, por meio dos relatórios obtidos no programa Justiça Em Números, assinala que é o ramo do Poder Judiciário que tem se mostrado mais eficiente na redução dos estoques o no julgamento dos processos em prazo razoável.
No relatório final de cumprimento das metas, divulgado no dia 5 de maio de 2015, relativo às metas estabelecidas para o ano de 2014, constatou-se que:O ramo que atingiu o melhor índice de cumprimento da meta foi a Justiça Eleitoral (114%) – 20 dos 27 Tribunais Regionais Eleitorais (TREs) cumpriram ou superaram 100% da meta, sendo que o TRE do Amapá alcançou resultado de 307%.[1]
Em relação à Meta 1 de 2014 do CNJ (Meta 1 – Julgar quantidade maior de processos de conhecimento do que os distribuídos no ano corrente), constou o seguinte[2]:
Mesmo exercendo com eficiência o mister eleitoral, deve-se mencionar que a Justiça Estadual também obteve elevado percentual de cumprimento da Meta 1 de 2014 do CNJ, inclusive superior ao obtido pela Justiça Federal, a despeito da carga de trabalho amplamente maior, vide:
Na Meta 2 de 2014 do CNJ (Meta 2 – Identificar e julgar, até 31/12/2014, pelo menos na Justiça Eleitoral 90% dos processos distribuídos até 31/12/2011), o percentual nacional de cumprimento da meta foi de 95,21%[3].
Os juízes de Direito são em grande parte responsáveis pelo sucesso da Justiça Eleitoral brasileira, que tem colaborado e servido de modelo para diversos outros países, o que é evidenciado pelo cumprimento das metas nacionais pelo primeiro grau de jurisdição eleitoral, a exemplo do percentual de cumprimento de 136,75% da Meta 1 de 2014 do Conselho Nacional de Justiça.
À exceção da região sudeste, o percentual de cumprimento da Meta 2 de 2014 pelo primeiro grau de jurisdição da Justiça Eleitoral nas demais regiões foi superior a 100%, a exemplo da região norte (108,20%), da região nordeste (101,62%), da região centro-oeste (102,58%) e da região sul (109,44%).
Não procedem argumentos de que os juízes federais têm mais afinidade com o Direito Eleitoral do que os juízes de Direito. A grande maioria das ações em tramitação na Justiça Federal são causas previdenciárias e fiscais, sendo que, excluídas essas demandas, as que restam são em quantidade inexpressiva. Nenhuma das demais matérias analisadas pelos juízes federais guarda qualquer tipo de relação com a Justiça Eleitoral e o Direito Eleitoral, até porque a Constituição exclui expressamente da competência da Justiça Federal a matéria eleitoral:
Art. 109. Ao juízes federais competente processar e julgar:
I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e às sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho (…).
Os juízes de Direito têm ampla experiência com Direto Eleitoral, não só porque se trata de matéria amiúde exigida em seus concursos, diferentemente do que ocorre nos concursos para juiz federal, mas também pela própria estrutura de carreira dos juízes de Direito, instituída em entrâncias, que permite que o magistrado inicie sua atuação como juiz eleitoral em municípios com menor número de eleitores, de sorte que, ao chegar aos municípios com grande quantidade de eleitores contam com vasta experiência em matéria eleitoral.
Os Estados têm capacidade de auto-organização e normatização própria, autogoverno e autoadministração. Autogoverno significa que “é o próprio povo do Estado quem escolhe diretamente seus representantes nos Poderes Legislativo e Executivo locais, sem que haja qualquer vínculo de subordinação ou tutela por parte da União”, consoante ensina Clémerson Merlin Cleve, citado por Alexandre de Moraes[4].
É da essência da autonomia dos Estados, pois, que a eleição de seus representantes independa de intervenção da União. O modelo brasileiro estipulou que o direito eleitoral é ditado pela União (artigo 22, inciso I) e que a estrutura da Justiça Eleitoral é mantida pela União, mas os juízes que a compõem são majoritariamente magistrados das Justiças dos Estados, isto é, os juízes de Direito e os desembargadores dos Tribunais de Justiça, sendo excepcional a participação dos juízes da União, consistente em um único membro do Tribunal Regional Federal, consoante artigo 120, §2º, II, da Constituição Federal.
No pacto federativo, os Estados outorgaram à União (ente central da Federação) a competência para legislar sobre Direito Eleitoral, com vistas a garantir a uniformidade na legislação no âmbito nacional. Os entes federados estaduais têm, contudo, efetiva participação na produção da norma jurídica eleitoral pela União, por intermédio dos senadores e deputados federais eleitos por cada Estado federado para o Congresso Nacional, o que resguarda a harmonia entre os entes federados e fortalece o pacto federativo.
A competência privativa da União para legislar acerca do direito eleitoral não conduz à conclusão do interesse do ente federado central na aplicação concreta da norma jurídica produzida para atrair a competência da Justiça Federal, tal como se sucede com as outras matérias da competência privativa da União, a exemplo do direito civil e do direito penal.
O constituinte, ao dispor acerca da organização e da estrutura da Justiça Eleitoral, observou o pacto federativo e a predominância do interesse, traçando as linhas gerais dos órgãos da Justiça Eleitoral e reservando aos juízes de Direito o exercício da função eleitoral na primeira instância. A composição dos Tribunais Regionais Eleitorais é reflexo do pacto federativo, prestigiando a autonomia das unidades federadas estaduais.
A maior motivação para que os juízes dos Estados sejam responsáveis pela Justiça Eleitoral não está na tão propalada capilaridade maior do que qualquer outra justiça, mas na própria essência do pacto federativo. A pretensão da Ajufe caracteriza, portanto, uma grave tentativa de violação ao pacto federativo e à paridade federativa, diante da tentativa de implementar, por ato infralegal, preferência em favor da União.
O artigo 109, §3º, da Constituição dispõe que “serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio dos segurados ou beneficiários, as causas em que forem parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal, e, se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual”.
Desse modo, boa parte das demandas de competência da Justiça Federal, pela falta de estrutura dessa justiça, tramitam nas justiças dos Estados. De acordo com o relatório do CNJ sobre a Justiça delegada, 27% dos processos de competência da Justiça Federal tramitam nas Justiças dos Estados, ou seja, de cada 4 processos de competência da Justiça Federal, pelo menos 1 processo tramita nas Justiças dos Estados.
A Justiça Federal na atualidade sequer é capaz de processar e julgar suas próprias causas, sendo incompreensível a pretensão de ampliar a atuação de seus magistrados, que na atualidade não são capazes sequer de julgar os próprios processos. Assim, antes de cogitar a possibilidade de exercer outra jurisdição além da que lhe é natural, deve a Justiça Federal assumir a integralidade da sua competência.
Diante da fragilidade dos argumentos sustentados para embasar a pretensão da Ajufe e da solidez dos fundamentos que garantem o exercício da jurisdição eleitoral em primeiro grau pelos magistrados das Justiças dos Estados, temos fé que o TSE decidirá a questão com sabedoria e observância à Constituição.
[1] Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/79281-justica-cumpriu-91-da-meta-de-produtividade-em-2014-e-fica-mais-celere
[2] Disponível em:http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/04/0e078e16a43bf6e2164f1e54668a9311.pdf
[3] Disponível em:http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/destaques/arquivo/2015/04/f115a29bc7485cb144a1b5ea40dfabb5.pdf
[4] MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2002. P. 271.