Nesta semana, o jornal O Globo mostrou o grande congestionamento das varas do país. A série de reportagens informou que um juiz acumula até 310 mil processos e que, no Rio, o tempo médio para julgar processos é de quatro anos. Os juízes brasileiros foram unânimes ao reclamar do excesso de ações. Segundo eles, vivemos em um país onde toda briga é levada aos tribunais. Faltam juízes para aparar tantas arestas na sociedade e políticas públicas para evitar que tudo deságue no Judiciário. Confira a íntegra das reportagens, com entrevistas de diversos magistrados, dentre eles o presidente da AMB, João Ricardo, e a juíza Cristiana Santos, da 12ª Vara de Fazenda Pública do Rio.
Sobrecarga de processos
Pouca informatização, muito trabalho por fazer e juízes soterrados em montanhas de processos. Tudo isso somado a um número sem fim de novas ações, que não param de fazer crescer os estoques do Judiciário. Esse é o retrato fragmentado das varas de Justiça de primeiro grau no Brasil, os locais onde começam a tramitar os processos comuns. Ao longo do último mês, O GLOBO visitou varas mais congestionadas do país. O acúmulo de processos é tão grande que, em uma vara de São Paulo, um só juiz precisa dar conta de 310 mil processos. Lá, são 1,56 milhão de causas divididas para cinco juízes. O número supera, e muito, a média nacional, de 5,6 mil processos por juiz da primeira instância. É o cenário de uma Justiça que não anda.
Os casos mais críticos estão onde a demanda é maior: a capital paulista e a capital fluminense. Mas há casos alarmantes em cidades pequenas, onde faltam juízes e sobram processos. A situação do primeiro grau é gritante em comparação aos Tribunais de Justiça – ou seja, a segunda instância -, em que a carga média de trabalho por magistrado é de 2,5 mil processos, menos que a metade do serviço destinado aos colegas da instância inferior.
Os números são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e mostram que o congestionamento da Justiça está bastante concentrado na primeira fase de tramitação dos processos. Nas visitas feitas pelo GLOBO, os juízes foram unânimes ao reclamar do excesso de ações. Segundo eles, vivemos em um país onde toda briga é levada aos tribunais, inclusive disputas por centavos de Real – um caso desse tipo foi identificado em São Paulo. Faltam juízes para aparar tantas arestas na sociedade e políticas públicas para evitar que tudo deságue no Judiciário.
Vara de Execuções Fiscais Municipais da Fazenda Publica de São Paulo é a área mais congestionada do Tribunal de Justiça | Fernando Donasci – Agência O Globo
– O Brasil, ao se redemocratizar, viveu um processo de hiperlitigiosidade. Isso é fruto de uma série de fatores, um deles é que as pessoas passaram a ter um nível mais elevado de consciência de cidadania. Em segundo lugar, o acesso à Justiça ficou um pouco mais fácil, não só pela implantação de defensorias públicas, como pela oferta relevante de advogados no mercado. E sem mencionar que há alguns atores sociais que violam sistematicamente direitos – sugere o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Na avaliação dele, o momento agora é de reduzir a litigiosidade como forma de solução mais rápida e efetiva dos conflitos. – Nós chegamos a um ponto que se torna imperativo fazer o caminho de volta. Vamos ter que viver um processo de desjudicialização, no qual o bom advogado deixará de ser aquele capaz de propor uma boa demanda, mas sim de evitá-la – analisa.
Para o ministro, aumentar o número de juízes não seria o mais adequado no Brasil: – Vamos ter que criar uma cultura de menor judicialidade. Cumprir a lei espontaneamente é parte de um avanço civilizatório.
O GLOBO também visitou duas varas de Justiça onde tudo vai muito bem. O congestionamento é ínfimo e o trabalho flui. Nas duas varas – uma nas proximidades de Brasília e a outra em Florianópolis -, o segredo é organizar o trabalho, criar metas e, claro, ter uma boa equipe para dar suporte.
Levantamento com base no “Justiça Aberta”, um banco de dados do CNJ, mostra que, em março de 2014, havia 9.920 varas de primeiro grau no país sob o comando de 10.617 juízes. Elas abrigam 60,4 milhões de processos. De um modo geral, varas de cobrança de dívidas com o poder público são mais atoladas que as criminais. A explicação dos juízes é que empresas e grandes devedores investem pesado na defesa, que acaba conseguindo protelar a execução da dívida. Nas criminais, réus são em boa parte pobres, sem recursos para fazer o mesmo.
O problema das execuções fiscais é dos mais graves para impedir que a Justiça ande. Dados do CNJ mostram que, dos 92 milhões de processos que tramitavam em 2012, 30 milhões eram de execução fiscal. Desses, a maior parte era por dívidas municipais, especialmente de IPTU. Para o conselheiro Rubens Curado, do CNJ, a quantidade de ações é reflexo da cultura de não pagamento de tributos no Brasil e da ineficiência do modelo atual de cobrança, totalmente judicializado.
– O procedimento é moroso e impõe ao Judiciário a localização do devedor e a busca dos bens. É um modelo falido, precisamos buscar um novo. Não há nenhuma melhoria possível do Poder Judiciário que não passe pelo problema da execução fiscal. O modelo atual de judicialização total de ações, inclusive aquelas fadadas ao insucesso, transforma os tribunais em um cemitério de processos aguardando a prescrição – observa.
Segundo o CNJ, o tempo médio em um processo de execução fiscal no Brasil é de cinco anos somente para fazer a citação do réu – ou seja, para avisá-lo da cobrança. Existe um projeto de lei do Executivo tramitando no Congresso Nacional desde 2009 com um novo modelo de cobrança de dívida ativa. Primeiro, a administração pública citaria o réu e determinaria o bloqueio provisório dos bens, para garantir o pagamento da dívida. Só depois o processo iria para o Judiciário.
– Essa proposta traria a redução de 80% a 90% dos processos que chegam ao Judiciário. Há um consenso no meio jurídico de que o modelo atual é falido e inviável, é preciso promover a desjudicialização das cobranças – diz Curado.
Dados do “Justiça em Números”, também do CNJ, mostram que, em 2012, o congestionamento médio do Judiciário era de 69,9%. Isso significa que, a cada 100 ações que chegam aos tribunais, apenas 30 são julgadas. O restante das causas permanecem nos escaninhos, às vezes por anos, aguardando solução. Considerando apenas a primeira instância da Justiça Estadual, a taxa é de 75,2%.
Há varas em que esse percentual atinge 96%, como a de execuções fiscais de São Paulo e a de Fazenda Pública do Rio de Janeiro. Uma vara criminal em Porto Seguro, na Bahia, ostenta índice de congestionamento de 90%.
O “Justiça em Números” leva a crer que o problema do primeiro grau não é desídia dos juízes, mas excesso de demandas. Em 2012, cada juiz na primeira instância estadual julgou 1.090 processos. Em média, três processos por dia, contando finais de semana e feriados. O número é alto, mas insuficiente para baixar os estoques.
Depois de enfrentar a carga intensa de trabalho, vem a inevitável frustração. O sistema judicial do Brasil permite que uma decisão de primeiro grau seja revista pelo Tribunal de Justiça. Em muitos casos, o processo vai parar no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e até no STF.
Para mudar esse quadro, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) promove uma campanha de valorização do juiz de primeiro grau. A intenção é incentivar a aprovação de projetos de lei no Congresso Nacional para diminuir o número de recursos possíveis. A ideia é que a parte tenha o direito a recorrer apenas uma vez ao Tribunal de Justiça. Em seguida, o processo seria encerrado.
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A sobrecarga do Poder Judiciário não é um problema apenas no Brasil. A Justiça Federal dos Estados Unidos está próxima do estrangulamento, segundo avaliação do próprio Judiciário, devido ao excesso de processos civis e criminais que chegam aos gabinetes dos 844 magistrados espalhados pelos 50 estados e o Distrito de Colúmbia (onde fica a capital do país). As 94 Cortes Distritais e os 12 Tribunais de Apelações que compõem o sistema federal, antevendo uma crise, solicitaram ao Congresso, em setembro , a abertura de 91 vagas de juízes para reforçar 32 jurisdições, nas quais está declarada situação de emergência judicial por sobrecarga de trabalho.
Nos EUA, os distritos judiciais equivalem às regiões dos tribunais federais brasileiros. Eles contam com 677 juízes federais, que lidam anualmente com pouco mais de um milhão de ações (entre as novas, as que são concluídas e as que ficam pendentes). Isso significa que cada magistrado está cuidando de 1.546 processos, em média. Comparada à carga dos juízes brasileiros de 5,6 mil por magistrado, parece aceitável. Mas, nos EUA, o corte para definir situação de emergência é menor.
Para evitar o colapso do sistema, as Cortes definem sobrecarga considerando apenas processos complexos, por exemplo, assassinatos, lavagem de dinheiro, crimes ambientais de ampla repercussão e fraudes. O sinal amarelo acende com uma média de 430 processos complexos por juiz. A partir de 600 casos por magistrado, a situação é de emergência, o que ocorre em 17 dos 94 distritos.
Já nos 12 Tribunais de Apelações, equivalentes aos que atuam os desembargadores federais no Brasil, passam por cada painel de três juízes anualmente, em média, 2.849 ações, das quais 1.033 representam casos complexos. A Justiça considera grave qualquer situação acima de 500. Há sete tribunais de apelações em situação de emergência atualmente.
No Rio, uma montanha de ações de cobrança
Nas prateleiras abarrotadas da 12ª Vara de Fazenda Pública da capital, no Estado do Rio, repousa uma das mazelas do Brasil. O estoque de processos daquela que é considerada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) uma das varas mais congestionadas do país — e a mais cheia do estado — é o resultado de uma combinação de calote dos contribuintes com a incapacidade pública de cobrar o imposto devido e a lentidão do Judiciário em dar fim às ações.
A competência para julgar os pedidos de execução fiscal do município do Rio inundou a 12ª Vara de Fazenda Pública com 820 mil processos, a maioria para cobrar dos inadimplentes. Desses, 6.305 processos estão com o andamento paralisado há mais de cem dias. A taxa de congestionamento chega a 0,96 — índice desenvolvido pelo CNJ que varia de zero a um e leva em consideração o número de processos novos e concluídos.
A juíza Cristiana Santos, da 12ª Vara de Fazenda Pública da capital: meta é reduzir em 250 mil o total de processos até dezembro | Gustavo Miranda
Levantamento feito pela seção Rio da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), e que confirma dados do CNJ, aponta que, a cada cem processos que correm nas varas do Estado do Rio, pelo menos 11 não são julgados. E, em relação aos que são julgados, o juiz de primeira instância leva, em média, 1.366 dias — quase quatro anos — para bater o martelo.
Morosidade na capital e no interior
As prateleiras repletas de execuções fiscais e processos da 12ª Vara de Fazenda Pública da capital se repetem em fóruns de municípios da Baixada Fluminense, da Região Metropolitana e do interior do estado, sobrecarregando juízes da primeira instância, o grande gargalo da Justiça no Rio. Em São Pedro da Aldeia, na Região dos Lagos, 81 mil processos aguardam por julgamento, sendo pouco mais de 10% parados há mais de cem dias.
Na comarca de Japeri, na Baixada Fluminense, o total de processos que aguardam por julgamento chega a 124 mil. Já em Magé, também na Baixada, entre janeiro e dezembro de 2013 o número de processos acumulados na 1ª Vara Cível pulou de 9.637 para 187.809. Em Rio das Ostras, na Região dos Lagos, a pilha de processos somente na 1ª Vara passou de 50.724 para 170.704 entre os meses de janeiro e dezembro do ano passado. Enquanto em Cachoeiras de Macacu, na Região Serrana, o acúmulo de processos passou de 36.551 para 38.733 em 2013.
Pressionadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal, que as impede de abrir mão da cobrança de impostos, para não caracterizar renúncia de verba pública, todos os anos as prefeituras transferem para o Judiciário o desafio de enfrentar a sonegação. Levantamento feito pela Corregedoria Nacional de Justiça já identificou a existência de 23 milhões de ações de execução fiscal em trâmite no país. No Rio, a 12ª Vara de Fazenda simboliza esse gargalo.
De acordo com a juíza substituta da 12ª Vara de Fazenda Pública da capital, Cristiana de Souza Santos, a prefeitura do Rio já chegou a encaminhar em um único ano cerca de 300 mil execuções fiscais. A vara reúne processos ligados à cobrança judicial de impostos municipais como o IPTU, o ITBI e o ISS, além de multas. Das mais de 800 mil ações acumuladas, cerca de 18 mil são processos onde os contribuintes recorreram das decisões, e o restante são execuções fiscais.
Transformado em cobrador, o Judiciário não sabe o que fazer. Parte dos processos não informa corretamente o endereço do devedor. Outra quantidade repete ações já ajuizadas anteriormente. Os magistrados também reclamam que, em muitos casos, ocorre a quitação sem que as varas sejam comunicadas.
A enxurrada de execuções fiscais na 12ª Vara de Fazenda Pública demonstra, além da capacidade deficiente de cobrança do município, a total falta de controle na abertura de ações, que chegam em blocos para evitar a prescrição. Enquanto o governo do estado fixa um limite mínimo para cobrança de débito, a prefeitura do Rio ajuíza todos os valores. Em média, as dívidas dos contribuintes cariocas são de R$ 500.
— Nossa previsão é encerrar este ano com 250 mil processos findos. Estudamos, junto com o município, maneiras de reduzir as execuções fiscais e os processos contenciosos. Uma das saídas seria encaminhar os débitos a órgãos de proteção como o Serasa e o SPC. As chances de quitação dos débitos sem que o município recorresse à Justiça seriam maiores — diz Cristiana, ao ressaltar que muitos contribuintes protelam o andamento dos processos para que as dívidas prescrevam.
A juíza cita ainda que um programa de renegociação de dívidas pela prefeitura ajudou a reduzir os processos entre 2013 e este ano. A maior parte dos contribuintes a aderir ao programa foram os grandes devedores, entre eles a Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos), que acabou com os processos em que era réu na 12ª Vara de Fazenda Pública.
A dificuldade de encontrar os devedores ajuda a acumular processos. Cabe ao município, interessado na cobrança, localizar o devedor. Até mesmo as ações onde já houve decisão e a dívida foi renegociada colaboram com o aumento das pilhas de processos. Quando a negociação prevê parcelamento (por exemplo, em 60 meses), só é dada baixa na ação quando todas as cotas são quitadas. A falta de pagamento das custas do processo também é apontada como um dos motivos para a ação emperrar. Hoje, cerca de 150 mil processos estão nessa situação na 12ª Vara de Fazenda Pública. Segundo a juíza Cristiana, quando há interesse do devedor em quitar suas dívidas, o processo pode ser encerrado em até duas semanas após ele ser comunicado pela Justiça sobre o pagamento.
Para reduzir o imenso estoque de processos, o desafio é arquivar. Pelo menos um terço do estoque de 820 mil estaria em condições de arquivamento, seja pelo pagamento do débito ou pela prescrição.
Mas o arquivamento em massa não descongestionaria a vara. Restam ainda os processos do chamado contencioso, que junta os mandados de segurança com os embargos de devedor. Estes, que demandam uma decisão mais sofisticada, chegam a 3 mil casos não julgados na 12ª Vara.
A prefeitura do Rio, a exemplo de outros municípios, pressiona pela cobrança das dívidas. O Judiciário, por sua vez, reclama que a mesma Lei de Responsabilidade Fiscal que abarrota suas prateleiras o impede de fazer novas contratações de servidores e magistrados. O organograma da Justiça fluminense destina três juízes para a 12ª Vara de Fazenda Pública. Atualmente, o juiz titular, Sérgio Seabra Varella, está de férias. São 90 na equipe.
Fonte: Assessoria de Imprensa da Amaerj com informações do jornal O Globo