* Artigo de José Ribas Vieira e Margarida Camargo
O protagonismo do Poder Judiciário no cenário de mudanças sociais e institucionais marcou o final do século XX como a era do constitucionalismo transformador. Nesse contexto, situa-se uma das decisões mais ousadas do STF – a do reconhecimento da legitimidade da “união estável” entre duas pessoas do mesmo sexo. A decisão do Tribunal, conforme a Constituição, expressamente desautoriza qualquer interpretação legal que “impeça o reconhecimento de união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família.
Tal procedimento há de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas conseqüências da união estável heteroafetiva”. De acordo com a Constituição, a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, o que de fato foi feito em 1996, quando ficou estabelecido que: “Os conviventes poderão, de comum acordo e a qualquer tempo, requerer a conversão da união estável em casamento, por requerimento ao Oficial do Registro Civil da Circunscrição de seu domicílio.” (Lei 9278, art. 8).
Contudo, diante da resistência por parte de juízes e cartórios, o Conselho Nacional de Justiça aprovou Resolução impedindo que as autoridades competentes se recusem a habilitar, celebrar ou converter a união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo. A questão é não apenas se o CNJ foi além do decidido pelo STF, ao dispor sobre o casamento, mas também se tal posição pode provocar um retrocesso no reconhecimento da igualdade entre as pessoas, no que diz respeito às relações homoafetivas.
Recentemente, a Ministra da Suprema Corte dos EUA, Justice Ruth Ginsburg, mostrou publicamente o receio de que as ações judiciais em defesa do reconhecimento do casamento gay, naquele país, possam vir a gerar uma resposta negativa pela maioria conservadora da Corte, e provocar um retrocesso nos estados que permitem o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo. Seria o que eles chamam de backlash. A Corte sentindo adiantar-se ao debate político, pode provocar um duplo retrocesso. De um lado, proibindo o casamento gay onde ele já é reconhecido legalmente, e, de outro, estancando o debate político em vigor nos demais estados da federação norte-americana.
Entre nós, é importante que se examinem os caminhos institucionais e legais passíveis de serem adotados. Destaque-se o questionamento quanto ao fato de o CNJ ter uma função de controle meramente administrativo e, dessa forma, não poder assumir o papel de legislador. A reversão poderia estar caracterizada pelo deslocamento desse processo a um contexto formal e hierárquico do direito. O constitucionalismo transformador materializa-se na articulação das decisões judiciais com os anseios da sociedade. O que, segundo a Justice Ruth Ginsburg, se dá mediante o papel balizador das Cortes Constitucionais.
O ingresso de medida judicial por parte do Partido Social Cristão refutando decisão do CNJ traduz, de forma exemplar, o firme propósito de novamente judicializar-se a questão do casamento gay no Brasil, pontuando preocupação sobre as formalidades e competências institucionais. Dessa forma, em lugar de promover o avanço, o ato do CNJ pode provocar um retrocesso. O STF, constrangido, pode se ver obrigado a dar a última palavra contrariamente àquilo que deveria ficar a cargo das demais instituições, em sintonia com os movimentos e manifestações sociais.
Fonte: Jornal do Brasil