*O Globo
Não faltam candidatos à adoção de crianças mais novas, brancas e saudáveis. Com isso, ficam nos abrigos os grupos de irmãos, as crianças mais velhas, os adolescentes e as crianças com deficiência ou HIV. Pois Francine Vieira seguiu na contramão do perfil habitual. Ela e a companheira estão há dez meses com a guarda provisória de três irmãos, negros, de 4 a 11 anos, um deles com doença crônica.
Esse raro encontro só foi possível graças a algumas figuras-chave. A começar pelo juiz Pedro Henrique Alves, da 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso, e por sua assistente, a psicologa Erika Piedade da Silva Santos. Ela pediu ajuda à advogada Silvana do Monte Moreira, diretora jurídica da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção (Angaad), que fez a chamada busca ativa, ou seja, a procura por pais interessados em perfis fora do padrão. Francine viu os irmãos na lista da Angaad e se interessou. As crianças, cada uma de um pai diferente, viviam num ambiente insalubre e foram retiradas da mãe biológica, viciada em drogas, por negligência.
Francine não vê a hora de ter a adoção concretizada, o que deve ocorrer em dois ou três meses. “Foi um amor instantâneo, não imagino a vida sem eles”, diz ela, de 41 anos, subgerente de uma loja de joias — a companheira, de 40, é gerente de uma loja de roupas masculinas. A família vive numa casa em São Gonçalo, com outros dois “moradores”: as cadelas Estrela, labrador de 7 anos, e Mel, vira-lata de 8. “Uma preta e outra loura, igual às mães”, brinca Francine.Neste domingo elas estarão na 8ª Caminhada da Adoção, a partir das 9h, na Praia de Copacabana, organizada pela Angaad, que marca o Dia Nacional da Adoção de Crianças, na quinta.
Desde que Pedro Henrique assumiu a 1ª Vara, há dois anos e meio, já foram julgados 2.200 processos. “A habilitação para adoção sai agora em três meses, e o tempo de adoção caiu de cinco a seis anos para seis a oito meses”, diz ele.
Por que vocês resolveram adotar os três?
Sempre desejei ser mãe. Aos 14 anos já falava nisso. E queria os dois tipos de maternidade, biológica e adotiva. Já tinha essa experiência na família, minha avó materna adotou um sobrinho e outro menino. Fiz dois tratamentos de inseminação artificial, mas não deu certo. Desistimos. É desgastante e dispendioso. Entramos no cadastro de adoção em fevereiro de 2014. Queríamos uma ou duas crianças, de 0 a 7 anos. Tanto fazia o sexo ou a cor, e podiam ter doença crônica ou deficiência física. Não tínhamos medo. Em setembro de 2015, “engravidei” e não me dei conta. Foi quando vi na lista da Angaad que havia disponíveis para adoção um menino negro de 3 anos e uma menina negra de 5, ambos com doenças crônicas. Mas, na minha euforia, não havia percebido que na folha seguinte havia ainda uma menina negra de 9 anos, também com doença crônica. Na época não estávamos preparadas para três irmãos.
E o que mudou?
Não conseguia esquecê-los. Nove meses depois, o período de uma gestação, saiu outra lista e eles continuavam lá. Senti um arrepio. Mas três era muito. Tentei arrumar outra família que morasse perto para adotar a mais velha. Com isso, manteríamos o vínculo entre os três. Um casal de duas mulheres em Niterói se interessou, mas não foi possível separar os irmãos porque eram muito ligados. Chorei muito, eles não me saíam da cabeça porque já estavam no meu coração. Parecia que eu estava abandonando meus filhos no abrigo. Eu amava aquelas crianças , mesmo sem nunca ter visto, tocado e sentido o cheiro. Não sabia sequer seus nomes ou rostos. Até que fomos avisadas de que se elas não fossem adotadas aqui iriam para a adoção internacional, porque já havia gente na fila. Meu mundo caiu. Como eu podia desistir delas? Eu e minha companheira conversamos, fizemos contas, alternamos entre razão e emoção, até que o medo ficou pequeno. Abdicaríamos de muitas coisas materiais, mas teríamos afeto, amor, respeito, dignidade. Quando fui conhecê-las, sorria e chorava. Pensava: “Será que é assim que as mães se sentem na sala de pré-parto?” Quando a mais velha me viu, deixou cair o brinquedo que segurava, correu em minha direção e agarrou minha cintura. Os outros agarraram minha companheira, beijaram-na e ela caiu no chão. Foram dois meses de aproximação, entre visitas e fins de semana juntos. Até pegarmos a guarda provisória, dia 1º de agosto passado.
O dia a dia de vocês não deve ser fácil.
Não, tem que ter muito suporte. Contamos com minha mãe e minha sogra. É puxado, mas eles dão o trabalho de qualquer criança, com as implicâncias, brigas, ciúmes. É preciso muita conversa, carinho, bronca, limite e amor. No início, o mais novo, o homenzinho da casa, quase não falava, se isolava, achávamos que tinha algum problema. Mudou demais. É falante, carinhoso, um espoleta. Do nada, diz: “Mamãe Fran, você é feliz? Eu sou feliz.” A do meio é linda, questionadora, tem muita personalidade. Brinco que é minha princesa ogra. A mais velha é encantadora. Aponta para a cabeça e o coração, diz que a mãe biológica está ali, e completa: “Mas prefiro ficar com vocês.” Eu e minha companheira estamos juntas há 15 anos. As crianças querem muito que nos casemos. Vamos fazer uma cerimônia e oficializar.
Como é adotar?
A maternidade não é um amor pelo que sai e sim pelo que entra. Meus filhos entraram em mim desde o dia em que li “menino negro 3 anos, menina negra 5 anos e menina negra 9 anos”. Ali eles nasceram para mim. E nos adotaram como mães. Aprendo todo dia várias lições. E a maior é que o amor nasce quando você permite. E nós cinco permitimos. Há quem tenha nos chamado de loucas. Afinal, são duas mulheres (adoção homoafetiva) adotando três crianças (grupo de irmãos) que têm hoje 4, 7 e 11 anos (adoção tardia). E uma delas com grave doença crônica. Sem contar a adoção inter-racial, já que minha companheira é branca. É um pacote e tanto. Mas é um pacote especial, único, embrulhado com o papel do destino e amarrado com o laço do amor.
Fonte: O Globo