*André Nicolitt
A incidência da Lei Maria da Penha decorre da violência, por ação ou omissão, baseada no gênero. Enquanto o sexo, que pode ser masculino ou feminino, é um conceito biológico, o gênero, também feminino e masculino, é um conceito sociológico independente do sexo. A referida lei não protege apenas o sexo feminino, mas o gênero feminino. O gênero refere-se ao papel social (feminino ou masculino) assumido pela pessoa, sendo assim um aspecto cultural e não anatômico. Esta noção é fundamental para entendermos o âmbito de incidência da lei.
À luz do art. 5° da lei 11.340/2006, configura violência doméstica e familiar contra a mulher, que justifica a intervenção do respectivo juízo, “qualquer ação ou omissão baseada no gênero” que esteja: (I) no âmbito da unidade doméstica, compreendida como espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas, o que para nós inclui até mesmo a empregada doméstica; (II) no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; (III) em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação e do tempo de convivência. Ademais, afirma o parágrafo único, do art. 5°, que as relações pessoais enunciadas no referido artigo independem de orientação sexual, ou seja, abrangem relações homoafetivas que envolvam lésbicas, travestis, transexuais, transgêneros e gays, estando todos estes ao abrigo da lei, desde que um dos sujeitos assuma a representação social de mulher (gênero feminino).
Não obstante, a prática judicial tem limitado a incidência da Lei Maria da Penha, reduzindo-a, praticamente, ao terceiro inciso do art. 5°, ou seja, às relações íntimas de afeto, destacadamente entre heterossexuais.
Todavia, o objetivo da lei foi dar amplitude ao âmbito de proteção da Lei Maria da Penha, que não pode ser reduzido apenas às agressões entre marido (companheiro) e mulher, ex-marido (ex companheiro) e ex mulher, interpretação que seria extremamente reducionista.
O próprio STJ, para ilustrar, reconheceu a incidência da Lei Maria da Penha, na violência praticada contra cunhada no espaço de convivência permanente (STJ, HC 172634, Min. Laurita Vaz).
Embora o termo gênero seja um tanto quanto indeterminado, a lei nos dá alguns elementos capazes de objetivar a definição de incidência da Lei e da competência do juízo especializado, são eles: a) unidade doméstica, ou seja, espaço de convívio; b) relações familiares (filiação, casamento, convivência, etc.); c) relações íntimas de afeto (namoro, união estável, entre pessoas de sexo igual ou diferente), independentemente de coabitação.
Não é necessária a incidência cumulativa dos três incisos do art. 5°, da referida lei, para a fixação da competência do juízo da violência doméstica, bastando apenas um e a ligação com o gênero feminino.
É possível que, mesmo diante de tais elementos, ainda que cumulados, haja circunstâncias excludentes da competência do juízo de violência doméstica, por exemplo, a motivação possessória ou patrimonial, ou violência indiscriminada e reiterada não só contra mulher, mas também contra homens (pai, irmão, etc), não raras motivadas por abuso de drogas ou álcool, etc. É o caso do filho que agride a mãe, mas também o pai e/ou irmão.
Discórdias e dúvidas sobre o tema ocorrem, principalmente, quando envolvem pai e filha, filho e mãe, além de outros parentescos (tio sobrinha, irmãos, primos, etc), além das relações homoafetivas.
A análise da competência deve ser feita caso a caso evitando-se generalizações, bem como buscando perceber a relação de dominação (ou tentativa de) em razão do gênero feminino, ou seja, da condição de mulher (ou da representação social feminina).
Vejamos alguns casos:
Estupro de criança ou adolescente
Muitos juízes que atuam nos juizados de violência doméstica contra a mulher estão declinando da competência nos casos de estupro de crianças e adolescentes, geralmente cometidos por parentes, não raro pais e padrastos, ao argumento de que nesta hipótese a violência não está baseada no gênero e sim na vulnerabilidade da criança ou adolescente. O tema deve abandonar a generalização, sob pena de conduzir a limitação do âmbito de proteção da lei, que visa proteger a mulher em todas as idades (art. 2°).
O sistema de informação sobre mortalidade da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (SIM/SVS/MS) demonstra que desde cedo as mulheres são vítimas de violência e o principal local é seu próprio lar, e na infância e adolescência os principais algozes da mulher são os próprios pais ou padrastos.
Lamentavelmente, alguns julgados estão ignorando este fato e partindo para generalização no sentido de que crime praticado contra filha, embora no âmbito doméstico, decorre da vulnerabilidade de sua condição de criança ou adolescente e não do gênero feminino.
De fato, por vezes, a violência não decorrerá do gênero, mas não se pode partir da premissa de que todos os crimes sexuais cometidos contra criança ou adolescentes não decorra deste. Imaginemos o pai ou padrasto que estupra a filha ou enteada, mas apesar de também conviver com outra criança ou adolescente, como filho ou enteado, não molesta ou abusa deste, que exerce o papel social masculino. Isso ocorre, seguramente, por uma questão de gênero, devido a forma que a mulher é vista em uma sociedade machista, na qual, desde criança, ao receber presentes e educação, é talhada para ser dona de casa, não ter desejo, ser objeto de desejo do homem, para servir ao lar, criar os filhos etc., enquanto os homens, desde a infância, são construídos para o trabalho externo, para a direção de automóvel, com estímulo a uma vida sexual livre, etc.
Na verdade, a regra, nestes casos é a proteção da Lei Maria da Penha, vez que estamos diante de uma violência promovida contra uma mulher, ainda que criança, no âmbito doméstico. Quando há evidências de que tal violência, indistintamente, tenha sido (ou poderia ter sido) produzida também contra pessoa do sexo masculino, neste caso, há possibilidade de um juízo de exclusão da competência da violência doméstica. Merece destaque ainda o fato de que no juízo da violência doméstica há toda uma estrutura legal de atendimento, proteção e assistência mais adequada a uma criança do sexo feminino vítima de crime contra a dignidade sexual. A toda evidência, as normas da Lei Maria da Penha visam criar uma ambiente muito mais confortável a esta vítima, do que o que lhe é reservado em uma vara comum.
Destaque-se que o artigo 2°, da Lei Maria da Penha, protege a mulher independentemente da raça, religião, idade, etc. Com efeito, em regra, o estupro de pai ou padrasto, contra filha ou enteada, é da competência do juízo da violência doméstica.
Não raro encontramos decisões que afastam também a incidência quando a agressão é de filho contra a mãe, irmão contra irmã, tio e sobrinha, ou ainda, quando envolvam relações homoafetivas. Reiteramos aqui a necessidade de análise de cada caso, fugindo a generalizações, buscando a identificação dos fatores preponderantes e analisando a questão do gênero feminino sendo subjugado ou discriminado pelo gênero masculino. Do contrário, haverá diminuição do âmbito de proteção da Lei Maria da Penha.
*André Nicolitt é juiz do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e Mestre e Doutor em Direito.
Fonte: Jornal do Commercio