Artigos de Magistrados | 18 de novembro de 2019 11:19

Em ‘O Globo’, Andréa Pachá critica estímulo a linchamento de magistrados

Juíza Andréa Pachá | Foto: Leo Martins

A juíza do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) Andréa Pachá criticou, em coluna publicada no jornal “O Globo” de sábado (16), os discursos de ódio nas redes sociais. A magistrada citou o estímulo a linchamentos e violência contra magistrados.

“Inaceitável que profissionais do Direito estimulem linchamentos e violência contra magistrados que decidiram pela interpretação literal da Constituição, no caso das prisões sem o trânsito em julgado, chegando ao cúmulo de uma advogada gaúcha ganhar notoriedade, publicando nas suas redes uma sugestão para que ‘estuprassem e matassem as filhas dos ordinários ministros do STF’, o que ensejou providências da OAB junto ao Conselho de Ética da entidade”, escreveu a juíza.

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“Inadmissível que autoridades públicas, profissionais liberais, especialistas e universitários ofendam a dignidade, os direitos fundamentais, os valores humanistas, como se não fosse necessário qualquer compromisso ético com o processo civilizatório, como se fosse natural estimular a vingança, elogiar a tortura e naturalizar a crueldade, sem que se cobre qualquer responsabilidade dos ‘letrados’ protagonistas da insensatez.”

Leia abaixo a íntegra da coluna:

Ofensas, ações e reações

A linguagem redutora das redes sociais potencializa o confronto, impede a circulação de ideias, estabelece um cenário no qual grupos de ódio se fortalecem, e perdem a vergonha de verbalizar as maiores imposturas, a ponto de esgarçar conexões de confiança construídas por indivíduos, sociedades e governos ao longo da história. No entanto, recentes e eloquentes exemplos de irresponsabilidade não têm surgido apenas nesses ninhos de ignorância, e muito menos podem ser atribuídos à falta de conhecimento científico ou à pobreza intelectual.

Como explicar que, diante das transformações sociais, advogados ainda insistam na legítima defesa da honra, para tentar absolver homens que matam mulheres, em pleno século XXI?

Surpreso com a tese sustentada pelo patrono de um homem que matara a companheira por asfixia, laçando-a pelo pescoço e esganando-a até a morte, após uma festa na qual ela teria dançado com outro rapaz, o ministro do STJ Rogerio Schietti Cruz repudiou o argumento, incrédulo que ainda seja utilizada a “esdrúxula” tese, sepultada pela Corte desde 1991, como fundamento de defesa técnica: “Não vivemos mais períodos de triste memória, em que réus eram absolvidos em plenários do tribunal do júri com esse tipo de argumentação.”

Igualmente inaceitável que profissionais do Direito estimulem linchamentos e violência contra magistrados que decidiram pela interpretação literal da Constituição, no caso das prisões sem o trânsito em julgado, chegando ao cúmulo de uma advogada gaúcha ganhar notoriedade, publicando nas suas redes uma sugestão para que “estuprassem e matassem as filhas dos ordinários ministros do STF”, o que ensejou providências da OAB junto ao Conselho de Ética da entidade.

Que as massas estimuladas por lideranças oportunistas se rebelem contra decisões judiciais e contra princípios civilizatórios é compreensível. Padecemos de um sistema criminal mais claro e objetivo, e de controles democráticos mais efetivos. Padecemos igualmente de formação educacional acessível e da compreensão do que seja responsabilidade.

Inadmissível, entretanto, que autoridades públicas, profissionais liberais, especialistas e universitários ofendam a dignidade, os direitos fundamentais, os valores humanistas, como se não fosse necessário qualquer compromisso ético com o processo civilizatório, como se fosse natural estimular a vingança, elogiar a tortura e naturalizar a crueldade, sem que se cobre qualquer responsabilidade dos “letrados” protagonistas da insensatez.

São tantas repetições do mesmo filme que não mais surpreende: o cidadão ofende, xinga, destila rancor e grosseria, acreditando que não será identificado. Uma vez descoberto, como no caso do torcedor racista, vem a público e se desculpa, pede perdão, jura não ter sido movido por qualquer mau sentimento. Como todo péssimo ator, sem conseguir representar o arrependimento com alguma credibilidade, se socorre da ironia tardia e tenta convencer a plateia de que foi um equívoco, uma brincadeira, uma piada incompreendida pela falta de humor do público ranzinza e excessivamente rigoroso. Quando confrontado com a responsabilidade, algumas vezes de ordem civil e criminal, se infantiliza, como se ações não devessem suscitar reações e limites.

O comportamento, típico da comunicação em rede, é inadmissível na vida real. Desculpas insinceras não interessam, nem eximem ninguém de responsabilidade.

Freud e Rilke passeavam por um jardim, quando encontraram uma flor rara, de beleza impactante. Após segundos de contemplação, Rilke, melancólico e triste constata:

— Uma pena. Tão linda e vai durar tão pouco. Amanhã terá desaparecido.

No que Freud o interrompe e conclui:

— Tão breve. Por isso, tão linda.

Se não compreendermos que a civilidade é a linguagem da democracia, como concluiu Rosiska Darcy de Oliveira em estupendo artigo publicado no GLOBO, ao menos aprendamos com o poeta e com o médico a importância da delicadeza para que nossa breve existência seja intensa e humana.