* João Batista Damasceno
Jandira dos Santos desapareceu após sair para interromper gravidez indesejada. Seu ex-marido a levou a um ponto de encontro com pessoa desconhecida e ficou esperando seu retorno, o que não aconteceu. Jandira morreu no procedimento, e tentaram desaparecer com seu corpo. Amputaram-lhe as mãos, os pés e a arcada dentária e a carbonizaram para dificultar pronto reconhecimento. Suspeita-se que o dono da clínica clandestina seja um miliciano. Por trás de toda clínica clandestina de aborto têm um agente do Estado que vende a proteção até que outro entre na rota. Jandira era uma mulher pobre e só por isso recorreu a uma clínica clandestina. Deixou uma filha de 12 anos. Outra mulher pobre, Elizângela Barbosa, foi abandonada na rua semana passada em Niterói, após complicação num aborto, e também morreu.
Milhares de mulheres pobres morrem todo ano em decorrência em abortos malsucedidos. Outras milhares, também pobres, estão sendo processadas criminalmente, submetidas ao mesmo julgamento que componentes de grupos de extermínio. O tribunal do júri, no Brasil, julga os crimes dolosos contra a vida, ou seja, homicídio, infanticídio, instigação ao suicídio e aborto.
As mulheres da classe dominante não correm risco de processo. Não fazem aborto em clínica clandestina, mas em hospitais particulares onde se internam sob outro pretexto. Quando têm complicação são atendidas por serviço de qualidade lhes posto à disposição. Diferentemente, as mulheres pobres quando têm complicação e sobrevivem são obrigadas a buscar o serviço público de saúde, onde são mal atendidas; seus casos são relatados à polícia e ao MP, que inicia o processo. Em casos mais graves há a possibilidade de desaparecimento com o corpo da vítima, como ocorreu com Jandira, ou o abandono em via pública, como ocorreu com Elizângela.
Ninguém defende ou é a favor do aborto, porque dói, sangra e traz outras consequências. Mas, se não há pessoa adulta no Brasil que não conheça quem já tenha feito aborto, é preciso ser consequente ante o sofrimento das vítimas da criminalização.
A questão vem sendo tratada sob inspiração religiosa, e não como questão da saúde da mulher. Políticos tacanhos ou oportunistas em busca de votos tratam do tema, sem reflexão sobre ele, como se estivessem num programa de auditório. Ainda que no âmbito das religiões o aborto continue a ser tratado como pecado, há de ser descriminalizado a fim de possibilitar assistência à mulher e lhes garantir vida com abundância. Vida não é apenas o oposto da morte, mas a realização plena do indivíduo.
A criminalização gesta a clandestinidade, a precariedade do atendimento e o risco à vida. O desejo sádico e punitivo de alguns, com violação à vida privada, se contrapõe ao direito à saúde das mulheres.
João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política pela UFF e juiz de Direito
Fonte: O Dia