Artigos de Magistrados | 10 de outubro de 2022 11:45

ConJur e ‘Gazeta do Povo’ publicam artigos de desembargador do TJ-RJ

Desembargador Wagner Cinelli | Foto: Matheus Salomão

A revista eletrônica Consultor Jurídico (ConJur) e o site do jornal “Gazeta do Povo”, do Paraná, divulgaram os artigos “Quando os fatos sociais se tornam jurídicos” e “Violência contra a mulher: homens que ladram e mordem”, de autoria do desembargador Wagner Cinelli, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ).

Nos textos, publicados na quinta-feira (6) e no domingo (9), o magistrado aborda a violência de gênero e a decisão inédita do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que valida a Lei Maria da Penha para mulheres trans.

Wagner Cinelli é autor dos livros “Sobre ela: uma história de violência” e “Metendo a Colher” e diretor do premiado curta-metragem de animação “Sobre Ela”. Confira os artigos:

Quando os fatos sociais se tornam jurídicos

Pensemos em um médico estudando o aparelho respiratório humano ou em um biólogo interessado no ciclo de vida de uma lagarta. Pois Émile Durkheim queria compreender melhor a sociedade e concluiu que seria fundamental observar os fatos sociais, tratando-os como coisas, tal e qual os cientistas das ciências médicas e biológicas faziam com os objetos de seus estudos.

Assim, na obra As regras do método sociológico, Durkheim apontou que o fato social possui três características: a generalidade, pois é sempre coletivo; a exterioridade, visto que existe fora do indivíduo; e a coercitividade, que é uma imposição ao indivíduo das crenças e valores de seu grupo social.

Desponta, então, uma questão, que é sobre a transformação do fato social em jurídico. Com efeito, nem todo fato social é jurídico. Para sê-lo, deve importar ao direito, de forma que ocorra a sua juridicização, que se dá com a sua inclusão na lei. O casamento, por exemplo, é um fato social que, por haver previsão legal, também é fato jurídico. Além da lei, esse — por assim dizer — upgrade do fato social pode acontecer também pelo pronunciamento dos tribunais, como será demonstrado com três exemplos.

O Supremo Tribunal Federal, em 1964, a respeito das uniões conjugais informais, editou a Súmula 380:

“Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.

Antes desse marco, um sem número de pessoas seguia juridicamente desamparada, sem direito à partilha dos referidos bens e sem pensão alimentícia. Nesse quadro, as mais prejudicadas eram as mulheres, ainda mais naqueles idos em que a sua participação no mercado de trabalho era ainda mais modesta. Posteriormente à súmula, essa proteção foi ratificada e ampliada por leis e, inclusive, por dispositivo constitucional (artigo 226, § 3º, da Constituição da República de 1988).

Outro caso emblemático da Suprema Corte sobre direito não contemplado em lei aconteceu em 2011, quando, por unanimidade, julgou conjuntamente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277, reconhecendo não haver distinção entre as relações estáveis heteroafetivas e as homoafetivas, ambas a merecer a aplicação isonômica da legislação que regula a união estável.

Um exemplo recente de atuação do Judiciário remodelando o ordenamento jurídico ocorreu em 2022, quando a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, deu provimento a recurso do Ministério Público do Estado de São Paulo, decidindo que a Lei Maria da Penha (LMP) é aplicável à violência contra a mulher trans. O relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, considerou a distinção entre gênero e sexo biológico, tendo pontuado que muitas vezes os dois não coincidem e que a LMP visa proteger “a mulher em virtude do gênero, e não por razão do sexo”. Dessa maneira, mulher trans é mulher, aplicando-se em seu favor os dispositivos da lei mencionada.

Seguindo a antiga lição de Durkheim, observemos os fatos sociais para melhor compreendermos nossa sociedade, cientes de que novos fatos surgirão e novos direitos idem, a provocar a atuação de legisladores e de magistrados, que serão instados a responder, ainda que com atraso, às demandas de seu tempo.

Violência contra a mulher: homens que ladram e mordem

Era uma vez dois cachorros.

Lilica mora lá em casa faz 12 anos. Adquirida como Lhasa, é sempre tomada por Shitzu e seu pelo bicolor lembra o sorvete Carioca da Kibon. Sobre a propriedade, há uma disputa: acho que sou o dono dela e ela tem certeza do contrário. Nesse ponto, uma espécie de Garfield canino. Seu comportamento é igualmente antissocial na interação com humanos e outros cães, o que é confirmado pelo latido sem fim que democraticamente dispensa a todos. A valentona late, mas não passa disso.

Outra dileta figura de meu círculo é Getúlio Vargas, assim batizado porque foi atropelado quando atravessava descontraído a avenida de mesmo nome, em Curitiba. Acudido, não recebeu os primeiros socorros de forma adequada. Acolhido por meu sogro e após os devidos cuidados, voltou a pisar com as quatro patas e já está correndo de novo. Diferentemente de Lilica, não paira dúvida sobre a sua viralatice. Sua pelagem, tomando de novo sorvete por referência, é chocolate. Quanto ao temperamento, é dócil, do tipo vai com todos. Entretanto, mesmo sendo tão amistoso, late, demonstrando uma predileção por ciclistas. Sim, late, mas como Lilica, não morde.

Lilica e Getúlio confirmam o dito popular “cão que ladra não morde”, a significar que quem ameaça não concretiza. Todavia, devemos ter muita cautela diante das intimidações feitas por humanos, especialmente se forem homens ameaçando mulheres, lição essa que recebemos do noticiário, que nos traz casos de feminicidas que prenunciaram sua intenção assassina. Foi exatamente o que aconteceu com Sandra e Alan.

Sandra Mara Curti, residente em Londrina, chegou a requerer medida protetiva por conta das ameaças do ex-marido, Alan Borges, que acabou por cumpri-las, matando a ex-mulher com 22 facadas na presença dos dois filhos do casal. Levado a julgamento pelo júri, foi proferida sentença condenatória, confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que fixou a pena em 33 anos e 4 meses de reclusão.

Alan, como tantos outros que perfilham roteiro semelhante, pautou-se por uma ideia que ainda perdura: “se não for minha, não será de mais ninguém”. Nem mesmo a reprimenda alta, como a que recebeu, é suficiente para frear a fúria assassina desse tipo controlador, que prefere perder a liberdade a ver a ex-companheira seguir a vida sem a sua interferência.

Aliás, essa concepção de ser dono do destino dela tem lastro na cultura machista que prega ser a mulher propriedade do homem, sujeitando-se às vontades dele. Afinal, um macho que não dá as cartas é como um atacante que não faz gol.

Homens assim impregnados dessa masculinidade tóxica ladram e mordem. Portanto, estejamos sempre atentos ao primeiro latido para que não ocorra sua repetição e – menos ainda – a mordida que pode ser fatal.

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