* Artigo do desembargador Jessé Torres Pereira Junior (2ª Câmara Cível)
“Juizeco?!”
O uso do diminutivo traduz, na linguagem coloquial, um de dois tratamentos: carinhoso ou pejorativo. Se utilizado com o fim de menosprezar, é pejorativo. Convém, então, verificar se há razões objetivas que justifiquem o uso ou se este revela ignorância. Chamar juiz de primeiro grau de “juizeco” revela ignorância.
A função judiciária ordinária é exercida em dois níveis – primeiro grau e segundo grau. No primeiro, atuam juízes; no segundo, desembargadores. Há um terceiro nível, exercido pelos tribunais superiores, integrados por ministros. Todos são juízes, no sentido de agentes políticos nomeados pelo Estado para a função de julgar conflitos de interesses em face da ordem jurídica vigente.
Os três graus são necessários para que as pessoas em conflito tenham assegurado o direito à revisão do julgamento por graus superiores sucessivos, o que almeja reduzir a margem de erro na aplicação do direito, seus princípios e normas. Papel, portanto, civilizatório, que impede a prática da justiça pelas próprias mãos e garante a todos a ampla defesa e o contraditório em cada processo judicial.
Ministério Público (promotores e procuradores), Defensoria Pública (advocacia estatal gratuita) e Polícia Civil (estadual e federal) não integram o Poder Judiciário. Os pleitos que pretendam propor e as providências que queiram requerer também devem ser submetidos ao juiz, que, observada a respectiva competência funcional, é juiz de todos: ricos e pobres, humildes e poderosos, empresas públicas e privadas, governantes e governados, homens e mulheres, crianças e idosos.
Os juízes de primeiro grau são os que recebem as demandas da sociedade e de outros agentes do Estado e as resolvem em primeiro lugar. Se a resposta não for considerada satisfatória pelos interessados, a estes cabe recorrer aos graus superiores da jurisdição. Denota déficit civilizatório insurgir-se contra o juiz, ao invés de recorrer, pelo trâmite adequado, à instância superior da jurisdição.
Os juízes de primeiro grau analisam os mais variados conflitos de interesse levados à Justiça. Ilustrando: nas varas cíveis, são comuns antagonismos patrimoniais, possessórios, contratuais; nas varas de família, discutem-se a guarda de filhos, direito a pensões alimentícias e seus valores, culpas pela separação do casal ou termos de acordo entre cônjuges desavindos; nos juizados de crianças, adolescentes e idosos, examinam-se abandonos de filhos ou a conduta infratora destes; nos juizados de pequenas causas, apuram-se os danos materiais e morais decorrentes de relações de consumo, incluindo os gerados por concessionárias de serviços públicos; nas varas empresariais, encaminha-se a recuperação de empresas em vias de falência, salvando-se empregos, ou administra-se a massa falida para o pagamento dos credores; nas varas de fazenda pública tramitam os processos de interesse dos entes públicos, como autores ou réus em ações de responsabilidade por danos causados por seus agentes, ou de execução de tributos não pagos; nas varas criminais, correm as ações penais, de que podem resultar condenações ou absolvições diante da acusação da prática de crimes. Ao menos para os milhões de protagonistas desses processos aflitivos (há mais de cem milhões de processos judiciais em curso no Brasil), o que está em jogo em cada processo não pode ser chamado de “problemeco” ou “questãozeca”, independentemente da complexidade técnica jurídica que possa ter cada conflito ou de seu valor econômico. Para exemplificar, recente relatório divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça aponta que, em 2015, cada um dos 800 juízes do Estado do Rio de Janeiro, cujo tribunal de justiça foi considerado como o mais produtivo do país, julgou, em média, mais de 3.600 processos.
A sobriedade com que se deve exercer a jurisdição dispensa diminutivos e superlativos. Superlativos são o volume e a diversidade do trabalho que diariamente o juiz cumpre na pacificação dos conflitos e na solução das demandas que a sociedade e outros órgãos do estado lhe trazem. Seria civilizado ao menos retribuir o cuidado e o empenho com que cada litígio deve ser composto, reconhecendo-se, respeitosamente, a relevância da função dos juízes em qualquer grau de jurisdição, desde o primeiro. Seria homenagear o direito que as pessoas têm de buscar solução judicial para suas desavenças e mostrar conhecimento sobre o grande mosaico do cotidiano social, político, econômico e ambiental que traumatiza o mundo contemporâneo.
* Publicado na Revista Justiça & Cidadania