CNJ | 19 de outubro de 2016 10:16

‘A Justiça Além dos Autos’: Um Povo que Sofre

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Juíza de Direito Alessandra Gontijo do Amaral

Recanto das Araras – GO

Ao chegar à cidade de Goiás, no ano de 2013, não imaginava que iria conhecer histórias tão diferentes do meu cotidiano, não apenas de magistrada, mas de ser humano dotado de sentimentos e de razões. Estava diante de mim, o maior desafio já enfrentado em minha vida. Sabia que poderia fazer algo por aquelas pessoas tão carentes de coisas simples, como sobreviver a um dia ensolarado, sem que isso fosse um sacrifício ou um risco muito alto à saúde.

O distrito do Recanto das Araras não deixaria de ser uma meta que buscaria com afinco, pois não conheci nada parecido por todos os lugares por onde passei. Ali, naquele povoado com cerca de 800 moradores, que fica a 40 quilômetros de Faina, na região noroeste de Goiás, habita a triste realidade de dezenas de pessoas portadoras de uma doença rara de pele, conhecida por xeroderma pigmentoso. Segundo a Associação Brasileira de Xeroderma Pigmentoso (Abra-XP), um em quarenta habitantes sofre da doença no povoado goiano, tornando-se o maior índice já registrado no mundo.

O XP é o resultado de uma mutação genética que gera hipersensibilidade à luz, e faz com que o portador se torne até mil vezes mais suscetível ao câncer de pele do que as demais pessoas. Os números não são precisos, já que muitos ainda não apresentaram os sintomas da doença, mas há, pelo menos, 24 casos já confirmados.

A doença é hereditária, e a grande incidência da patologia, na região, deve-se ao fato de se realizar muitos casamentos consanguíneos, ou seja, entre parentes. Os primeiros casos de XP, no Recanto das Araras, ocorreram há mais de 150 anos, porém, somente no ano de 2010, a doença foi diagnosticada. Outro fator que contribui para a piora dos casos é o clima do local que não favorece a vida dessas pessoas, por ser muito quente. A maioria da população trabalha nas lavouras na zona rural, sem qualquer proteção contra os raios ultravioletas (UVA e UVB) gerados pelo Sol.

O xeroderma não escolhe sexo, podendo afetar homens e mulheres. O índice de câncer é altíssimo tanto para órgãos externos como internos. A doença se manifesta desde os primeiros anos de vida e evolui com o tempo, podendo causar mutilações, doenças neurológicas progressivas, microcefalia, ataxia (perda de coordenação dos movimentos musculares voluntários), surdez neurossensorial, retardo mental e alterações nos olhos. A patologia é fatal, sendo que, em alguns lugares, como a Guatemala, que também registra um número alto de portadores, estes não chegam à fase adulta, na maioria dos casos.

O cotidiano dos portadores de xeroderma é o isolamento, pois, além dos cuidados que devem ter com proteção, eles se envergonham da própria condição. Muitos já se encontram em estado avançado da doença, com mutilações e deformações. Há relatos em que pessoas perderam parte do rosto, como nariz, lábios, olhos e bochechas. O contato com o mundo, durante o dia, deve ser feito com muito protetor solar, roupas compridas, óculos escuros e chapéu. Mesmo assim, as saídas diurnas devem acontecer apenas em casos emergenciais. Por terem noção de suas aparências, os portadores da doença, moradores do povoado de Recanto das Araras, não sentem vontade de sair do local.

Em uma sociedade com tantas diferenças, uma aparência tão rara ainda pode causar espanto, principalmente, pela falta de informações sobre o contágio da patologia. Como ainda não há cura nem tratamento definido, muitos testes foram realizados, para tentar minimizar a gravidade da doença. Cirurgias e implantação de próteses foram realizadas, mas não foram exitosas o sufi ciente para curar ou melhorar a aparência dos pacientes.

Em esforço conjunto, com a equipe do Programa Acelerar – Núcleo Previdenciário do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), no dia 20 de agosto de 2015, foram realizadas 31 audiências com os portadores de XP, no período noturno, em que foram concedidos 27 benefícios. Além dos atrasados, todos já estão recebendo os direitos implantados pela Agência de Atendimento de Demandas Judiciais da Gerência Executiva do INSS. Estiveram engajados nessa ação: seis Juízes, dois Peritos Judiciais, um Procurador Federal, uma Assistente Social e uma Pedagoga.

A participação em um movimento como esse reforça a minha convicção de que, por trás da toga, o magistrado é um ser humano que busca, na profissão, uma forma de levar soluções além das decisões judiciais. Reconhecer que o conflito e os problemas sociais estão na vida das pessoas é buscar caminhos, para solucionar a lide processual e a lide sociológica.

Não menos importante que proferir sentenças em pilhas de processos é conhecer, de perto, as necessidades desse povo sofrido que habita a nossa pátria amada. Diante de tantas realidades, o Brasil se forma com muitas adversidades pouco conhecidas e que podem levar a um infortúnio desumano.

Escolher a magistratura, como profissão, é aceitar a missão que nos é concedida de semear a paz social e buscar o conforto daqueles que esperam uma resposta do Estado. Os portadores de Xeroderma não pedem socorro apenas, suplicam por complacência, por piedade, e aguardam, pacientemente, serem ouvidos. No refúgio escondido do Recanto de Araras, muitas bocas mutiladas guardam seu silêncio, mas esperam serem ouvidas. Não há que se falar em heroísmo, nas ações realizadas por nós que ali estivemos, mas procedimentos obrigatórios de seres humanos que se solidarizam com os seus iguais, que ouvem a voz dos necessitados.

Diante de um mundo, cada vez mais, voltado para o capitalismo, onde as pessoas multiplicam seus bens materiais na proporção que diminuem seus sentimentos, pensar no próximo se tornou algo admirável, quando deveria ser natural. A falta de amor faz com que as pessoas vedam seus olhares para o próximo. A luta incansável daqueles que ainda procuram humanizar a vida alcança lugares e pessoas anônimas, mas imprescindíveis.

Os magistrados possuem a dádiva de lidar com o obscuro, com a mancha social, com a intolerância, com o conflito, com o medo e com diversos outros desassossegos do mundo. Negar a sua participação na tentativa de resgate de quem sofre todas essas mazelas seria esconder-se dentro da toga e viver apenas a teoria, sem construir a prática. A magistratura nos permite envolver a sociedade em seus problemas, seus descasos, suas dores. Não há que se permitir apenas o contato com o gabinete, o Juiz ganha às ruas, sobe montanhas, atravessa rios e encontra pessoas necessitadas em todas as formas de carências e supressões. Silenciar diante de tantos gritos é desmerecer uma profissão que nos permite dar corda ao relógio do mundo e elucidar situações.

Nada disso, porém, é motivo para eclodir a esteira da vaidade, mas para sentir silenciar o grito de horror de uma sociedade que chora por tantos sofrimentos distintos, para ouvir o alívio daquele que chora baixinho, como os habitantes do povoado do Recanto das Araras, que são vítimas de uma maldição sem, sequer, ter contribuído para tanto.

Graças as nossas ações, em parcerias, o povoado foi reconhecido. Muitos ouvidos escutaram o clamor de seus habitantes, e algumas ações sociais começaram a fluir. Vários procedimentos com os moradores estão sendo realizados por profissionais da saúde, como prevenção ao câncer, consultas, cirurgias e exames de dermatologia começaram a ser implantados. Finalmente, o grito de clemência desses seres humanos marcados pela dor foi ouvido por mais profissionais.

É com satisfação que narro a minha experiência vivida e confirmo a minha prontidão para novos desafios. Tomada pela vontade da certeza da justiça realizada no seu mais valioso significado, continuo a buscar caminhos por meio da união entre a teoria e a prática, com o afinco de promover os melhores resultados.

Aproveito-me a oportunidade, para agradecer a todos os meus colegas, que incansáveis na busca pela justiça social, não desistem do nosso “Brasil brasileiro” nem do povo que aqui habita. Agradeço, ainda, aos membros do Ministério Público, servidores e demais profissionais que trabalharam com afinco e, principalmente, com muito amor, nessa batalha cotidiana no Recanto das Araras. Felicito a Ministra Nancy Andrighi, Corregedora Nacional de Justiça, pela oportunidade de relatar tão bela e inesquecível experiência, bem como ressaltar a importância do livro a ser lançado, para que a justiça ande, cada vez mais, pelos caminhos sombrios deste imenso e amado Brasil.