Desembargador Cairo Ítalo França David
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Lembro-me de quando era Juiz na Comarca de Casimiro de Abreu, interior do Estado do Rio de Janeiro, e lá, até hoje, uma comarca da primeira entrância, o juízo é único, logo, o magistrado tem que decidir questões cíveis, criminais, de família, da infância e juventude e por aí afora.
À época, 1988, a denominação não era infância e juventude, era Juiz de Menores. Nossa condição, fui procurado por um Comissário Voluntário de Menores (essa era a nomenclatura da época), e ele, que era uma pessoa muito dedicada, comunicou ter chegado ao seu conhecimento que uma menina, com onze anos de idade, estava sofrendo humilhações, sendo tratada de forma indigna e desumana. A garota era deficiente mental, sendo totalmente dependente dos pais e parentes. Estes, por sua vez, laboravam na roça e, quando saíam para trabalhar, amarravam-na numa corda, na varanda da casa, e deixavam a sua comida e a sua água em latas, como se ela fosse um cachorro ou animal similar.
Quando tomei conhecimento do fato, ordenei que ele diligenciasse e informasse se o fato era verdadeiro. Assim foi feito, e ele me confirmou que aquilo realmente estava acontecendo. Conversei com o Promotor, e ele requereu a instauração de um procedimento na justiça menorista e também na criminal, tendo, inclusive, pleiteado a prisão dos pais da infante, os quais chegaram a ser recolhidos, e marquei uma audiência urgente.
O Comissário de Menores, pessoa de algumas posses, que residia em Rio das Ostras e conhecia várias pessoas, procurou um lar substituto para a menina e foi feita a audiência. Percebi que os pais da infante eram pessoas extremamente humildes, que sequer tinham uma real noção do que faziam com a sua fi lha, sem condições de deixá-la numa creche ou instituto similar.
Após a realização da audiência, com a presença do Promotor de Justiça e do Defensor Público, conseguimos colocar a menina num lar substituto, onde ela teria tratamento adequado. Seus pais foram soltos, com as advertências de praxe. A garota a tudo assistiu, sem pronunciar qualquer palavra. Dava a impressão que não entendia nada do que estava ocorrendo, porque fi cara, o tempo todo, com o olhar perdido no vazio.
Ao fim da audiência ditei as medidas decididas, bem como a determinação da sua colocação em lar substituto. Já estava encerrando quando ela se levantou do local onde se encontrava sentada e, sem mais nem menos, veio até a mim e estendeu a mão direita para me cumprimentar. Cumprimentei-a, e ela olhou para mim, dando um meio sorriso, como que a agradecer pelo que havia sido feito por ela. Fui tomado de uma grande emoção, mas consegui me controlar . Saí rapidamente, com alguma desculpa, fui até o Gabinete onde deixei que toda a emoção aflorasse em lágrimas, que até hoje retornam, quando conto esta história para alguém.