Desembargador Jessé Torres Pereira Júnior
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
Segunda metade da década de 1980. Contava pouco tempo de magistratura, pois, à época, os editais de concurso exigiam a idade mínima de 35 anos para o ingresso na carreira. Nela, ingressei em janeiro de 1984, aos 38 anos.
Minha experiência profissional anterior era sobretudo voltada para o direito administrativo, que lecionava e praticava no exercício de funções na Administração Pública, acumuladas com modesto escritório de advocacia cível compartilhado.
Vida nova, com a aprovação no concurso, exceto quanto ao magistério, em que me mantenho até hoje. Fui designado para substituir o titular de uma Vara de Família, na Comarca de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro. Pauta de audiências começando às 8 horas da manhã, e expediente que se prolongava, não raramente, até as 20h, ao cabo do qual, o corpo estava moído de tanto presenciar e absorver dramas e tragédias de relações não resolvidas.
Por mais técnica e atenta às circunstâncias que fosse a decisão, era evidente que não resolvia o conflito. Não há decisão judicial que ponha fim a ressentimentos. As lides de família se alimentam de ressentimentos. Entendi, então, porque as sentenças lá proferidas não fazem coisa julgada material. Qualquer novo fato, ainda que episódico, é pretexto para reabrir feridas e restaurar o conflito, como se jamais houvesse sido objeto de uma decisão judicial.
Esse foi um dos episódios da carreira que me mostrou que não se pode decidir sem se saber o que move o conflito, sejam quais forem as partes, pessoas jurídicas ou físicas, letradas ou incultas, sofisticadas ou rústicas. Cabe ao magistrado comunicar-se em nível inteligível por elas.
Primeira audiência da pauta, naquela manhã chuvosa, típica do verão petropolitano: conciliação de um casal, com fi lhos, disposto a se separar. Cumpri o dever de ofício de iniciar a audiência, exortando as partes à reconciliação. Silêncio… Até que o homem disse que a mulher tinha razão, porque ele estava mesmo “meio patife”. Silêncio novamente, pelo tempo necessário a que eu me desse conta do inusitado.
Como decidir sobre fatos expressos em palavras e expressões cujos significados não se conhece? Olhei, de soslaio, para a Promotora, mais jovem do que eu, que me devolveu o olhar de perplexidade.
Dei curso a um diálogo ainda mais inusitado, na expectativa de extrair o significado que me abrisse o entendimento sobre as raízes da separação, para, só depois, tentar promover, com mínima chance de sucesso, a tal conciliação.
– Mas, então, senhor João (fictício), quando foi que o senhor começou a se sentir meio patife? Isso já lhe tinha acontecido antes?
– Não, doutor, nunca pensei que ia passar por isso, mas aconteceu…
– E onde foi que aconteceu?
– Não sei dizer, não, senhor.
Notei que a mulher estava inquieta e me dirigi a ela.
– Então, dona Maria (fictício), não estou entendendo por que o seu marido ser meio patife é motivo de separação?
– Doutor, é porque ele é meio patife só comigo, com as outras não. Se não funciona comigo, por que vai funcionar com as outras?
A promotora interveio:
– Entendi, Excelência. O marido seria patife inteiro se não funcionasse tanto em casa quanto na rua. Como não funciona só em casa, é meio patife. Não é isto, dona Maria?
– Sim, doutora, e patife pela metade eu não aceito.
Bem que tentamos, eu e a Promotora, contornar o ressentimento da mulher e incentivar o marido. Talvez, quem sabe, isto pudesse ser resolvido com um aconselhamento médico, psicológico. Afi nal, os filhos… Nada. Uma hora depois de conversa, o casal se mantinha na firme disposição de se separar. No dia seguinte, o marido estava de volta em meu gabinete, espontaneamente. Contou que na noite anterior tentara deixar de ser meio patife e conseguira. A mulher o aceitara de volta.
– Ainda seria possível desfazer a separação? – perguntou.
– Sempre é, senhor João.