AMAERJ | 13 de outubro de 2016 16:18

‘A Justiça Além dos Autos’: Aconteceu em Duque de Caxias

mafalda

Juíza de Direito Mafalda Lucchese

1.ª Vara de Família – Duque de Caxias / RJ

1.º Caso

Tem início mais uma tarde de audiências. Faz-se o pregão, e adentram à sala de audiências a mãe de duas crianças, o pai e a avó materna, assistindo sua fi lha de 20 anos de idade, relativamente incapaz, pois, à época, ainda se encontrava o Código Civil de 1916 em vigor. A questão era simples: acordar sobre o pensionamento aos filhos, frutos daquele relacionamento.

Indagados sobre a possibilidade de acordo, todos respondem afirmativamente, e a avó materna passa a explicar que o pai de seus netos era um homem muito bom, não negaria o pensionamento, pois já havia sido seu companheiro anteriormente. O pai daquelas crianças passa a explicar que seus filhos tinham direito ao plano de saúde fornecido pela empresa para a qual trabalhava e indaga se poderia sair da sala de audiências, para buscar as carteiras de dependentes, que havia deixado com seu irmão, atual companheiro da mãe de seus filhos, ou seja, tudo estava em família, sem brigas. Foi uma das audiências mais tranquilas que realizei.

2.º Caso

Desenvolvi o projeto intitulado “Toda Criança Tem Direito à Filiação” (transformado em Lei Municipal n.º 2.402/11 e Lei Estadual n.º 6.381/13, e há o Projeto de Lei Federal n.º 3.041/11 com igual teor em andamento) que visava, em parceria com escolas municipais, regularizar os registros de nascimento daqueles alunos com a filiação incompleta: somente o nome da mãe ou do pai ou sem filiação. Em uma dessas audiências, comparece o Sr. X, que tinha seis filhos para reconhecer. Começo a audiência indagando:

– Senhor, seis filhos para reconhecer? Por que levou tanto tempo para regularizar essa situação?

– Excelência, não tenho apenas seis filhos, mas vinte e um.

– Todos com a mesma esposa? – espantada, indaguei.

– Não doutora, são onze com minha esposa e dez com minha companheira. Cheguei a registrar quatro dos havidos da relação extraconjugal, mas, como minha esposa começou a ficar desconfiada e estava muito doente, procurei respeitá-la e parei os reconhecimentos. Agora, ela faleceu e posso regularizar a situação de todos.

Perguntei se a esposa sabia da existência da companheira, pois esta sabia da existência daquela, e ele esclareceu que todos moravam no mesmo bairro e que a casa de uma e de outra ficavam à distância de uns quarenta metros, mas a esposa nunca soube. Para justificar suas ausências à noite, ele dizia que o vizinho havia viajado e pedido para colocar comida para o cachorro ou que tinha que tomar conta da casa dos patrões que haviam viajado. Fez questão de esclarecer que tratava as duas igualmente e somente dava presentes quando podia comprar um para cada uma. Também acompanhara as mulheres em todos os partos, até que tivessem alta hospitalar, e que todos seus filhos são corretos, honestos, educados e nunca fora a uma Delegacia por causa de problemas com sua prole. Ainda esclareceu que seus filhos tinham que respeitar as namoradas e se comportarem como homens de bem, sendo fiéis, não podendo seguir o exemplo do pai nesse aspecto.

Sua companheira e os filhos havidos com esta estiveram presentes à audiência e não demonstraram qualquer problema ou tristeza em relação à situação relatada. Ao contrário, eram muito sorridentes, amigos, unidos e aparentavam serem pessoas felizes, bem resolvidas, sem qualquer trauma.

No mesmo projeto, um rapaz que compareceu à serventia do juízo, atendendo à notificação para esclarecer se reconheceria a paternidade de uma filha, que havia sido selecionada pelo projeto na escola em que estudava. Ocorre que o rapaz compareceu acompanhado da mãe da menor e, aparentemente, mantinha com esta um relacionamento amoroso. Logo, disse reconhecer a criança como filha, parecendo bastante orgulhoso de tal fato.

O funcionário que os atendeu, em pesquisa junto ao sistema informatizado, observou que havia outra criança com a paternidade apontada para o mesmo rapaz, entretanto a mãe era outra, e as datas de nascimento das crianças eram muito próximas, algo em torno de uma ou duas semanas de diferença. E agora? Como indagar se também procederia o reconhecimento da outra filha sem melindrar e causar transtorno ao casal? Eis que o servidor, com muito “jeitinho” e sob a desconfiança da genitora, chamou o rapaz a uma sala reservada:

– Senhor, sabe que há outra menor cuja paternidade lhe está sendo atribuída?

Então, o rapaz perguntou o nome da criança. “É fulana”, respondeu o servidor, esperando que a resposta fosse negativa. Ledo engano… A resposta foi:

– Ah! Fulana, filha da Sicrana? É minha também! Foi por isso que o senhor me chamou a esta sala? Não precisava, não… Minhas mulheres se conhecem, sabem da existência das crianças e convivem muito bem…

De fato, ao voltar ao balcão não havia um fio de constrangimento, a não ser por parte do pobre servidor…

3.º Caso

Tramitava ação de divórcio, ainda antes da nova redação do §6.º, do art. 226, da Constituição Federal. As partes não queriam celebrar acordo sobre a partilha, que se restringia a uma única geladeira velha. Por ocasião da separação de fato, ocorrida há mais de cinco anos, o eletrodoméstico ficou com a mulher.

Resultado: decretei o divórcio e reconheci a usucapião da geladeira a favor da consorte. Ninguém recorreu.

4.º Caso

Ainda antes da nova redação do art. 226, § 6.º, da Constituição Federal, uma senhora de aproximadamente 65 anos de idade e um senhor de cerca de 90 anos ou mais, por conselho do pastor da igreja que frequentavam, resolvem contrair matrimônio.

Cerca de um mês após o casamento, o marido ingressa com ação de separação litigiosa atribuindo culpa à mulher, sob o argumento de que esta estaria se recusando a manter relações sexuais. Embora achasse estranha a narrativa, designei audiência prévia de conciliação, para a qual, compareceram apenas a esposa, uma senhorinha, muito constrangida, e a advogada do marido. Indaguei à patrona a razão da ausência de seu constituinte e esta respondeu:

– Ele é muito idoso, está doente, com dificuldades de locomoção, reside num sobrado e não consegue subir e descer escadas.

Pedi para que lesse o fundamento do pedido de separação e confirmasse se ainda insistia no prosseguimento. A advogada parou, refletiu… Todos olhávamos para aquela senhorinha extremamente constrangida… Finalmente, desistiu do prosseguimento do feito, com a concordância da ré.

5.º Caso

Dia de audiência, feito o pregão. O pedido era de revisão de pensão alimentícia, pretendendo o pai diminuir o valor do pensionamento em favor da filha, que havia adquirido a maioridade, cursava a universidade e residia com a avó e a tia materna, desde o falecimento da genitora.

A ré, com seus 18 anos completos, choramingando, reclama, em audiência, que o pai, além de não cumprir a obrigação alimentar, não lhe dispensava qualquer atenção e que, mesmo sendo cabeleireiro, nunca lhe fez um cafuné nos cabelos, tendo esta, inclusive, que gastar dinheiro com outros profissionais, para arrumar suas madeixas.

O pai, entristecido e magoado (também às lágrimas), afirma que não teve oportunidade de se aproximar da filha e estreitar os laços de convivência, porque a família materna sempre os manteve afastados, dificultando o contato, uma vez que este era um simples cabeleireiro de periferia, enquanto a família materna possuía melhores condições financeiras, nunca tendo aceitado o relacionamento entre o genitor e a mãe da ré.

Percebendo que a família materna não permitiria a aproximação entre filha e pai, diante da própria narrativa da jovem e a fim de aproximá-los afetivamente, porquanto o cerne do litígio era a ausência de afeto e não o valor da pensão, foi obtido acordo tendo, como cláusula de pensionamento, além do pagamento de 70% do salário-mínimo nacional, a prestação de serviços de cabeleireiro pelo próprio pai à filha, serviços estes constantes de uma escova semanal, de uma hidratação mensal, além de tratamento capilar semestral, o que possibilitaria que as partes se tocassem, mantendo contato e construindo a afetividade de que tanto careciam.

Os valores dos serviços de cabeleireiro foram convertidos em percentual sobre o salário-mínimo, a fim de que o acordo se tornasse exequível, pois, além da emoção, não se podia deixar de ser racional no caso de descumprimento futuro.