Brasil | 10 de outubro de 2016 14:28

Juízes propõem lei para incentivar e proteger denunciantes

* O Globo

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Tribunal de Justiça do Paraná – Divulgação / TJ-PR

Quando alertou a diretoria da Petrobras sobre irregularidades, a gerente Venina Velosa foi desacreditada e transferida para Cingapura. O homem que filmou a execução de um pedreiro por dois policiais na Zona Sul de São Paulo teve que fugir do bairro e foi perseguido: PMs mataram seis vizinhos dele em um bar dias depois, em represália. A enfermeira Ana Izabel Salomão denunciou o diretor do hospital de Augustinópolis (TO) que fazia cirurgia em troca de voto na cidade onde foi candidato. O Ministério Público o processa por improbidade administrativa, e Izabel tem medo de ser afastada de suas funções.

As três histórias tratam do desejo de relatar atos de interesse público, apesar do preço alto. Garantir proteção a pessoas movidas pelo mesmo ideal é a pretensão de um grupo de juízes de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, que construiu proposta para que essas pessoas também sejam incentivadas a agir quando tiverem informações sobre atos ou omissões de interesse de todos. Dezenas de países contam com programa semelhante para atenção a esta figura, conhecida internacionalmente como whistleblower. Na proposta brasileira, ele foi batizado como o “reportante”.

DISCUSSÃO EM NOVEMBRO

Ao contrário do delator premiado — figura já prevista na legislação brasileira e muito conhecida, agora, por causa da Lava-Jato —, o reportante não participou de crime, mas tem informações a relatar sobre atos que atentem contra o patrimônio público, a probidade administrativa, direitos humanos ou ordem econômica e tributária, entre outros temas.

A iniciativa foi encampada por entidades que integram a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, entre elas o Ministério da Justiça, e deve ser incluída no pacote em discussão na comissão especial de combate à corrupção da Câmara dos Deputados, a ser levada ao plenário no início de novembro. Em seguida, o tema vai ao Senado.

O projeto traz inovações como o pagamento de recompensa ao reportante de percentual entre 10% e 20% do total recuperado ou pago em multas. E também medidas para protegê-lo de retaliações, como a proteção de sua identidade, entre outras.

O poder público deverá criar comissões para recebimento de relatos, vinculados a unidades de ouvidoria e correcionais, cujos membros são protegidos por mandato mínimo de dois anos. Elas terão autonomia para definir critérios de relevância de relatos — tanto do ponto de vista do potencial de arrecadação quanto do mérito da denúncia. Admitido o caso, ele é encaminhado a autoridades de fiscalização e investigação, que têm seis meses para tomar providências. Apenas nos EUA, programa semelhante permitiu recuperar US$ 19 bilhões entre 2009 e 2015.

— A saúde de uma empresa pode ser afetada por irregularidades cometidas por funcionários graduados. A existência de canais dessa natureza acaba por salvar a continuidade da cadeia de empregos — analisa o desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) Márcio Rocha, pesquisador do tema e à frente da iniciativa dos juízes brasileiros.

Responsável pelo programa de whistleblower do Internal Revenue Service (IRS), a Receita Federal dos EUA, Lee Martin conta que o órgão paga entre 15% e 30% a quem levar informações relevantes sobre sonegação de contribuinte cuja aplicação de penalidades ultrapasse US$ 2 milhões:

— Isso inclui impostos não pagos, multa e juros. Se o valor arrecadado não chegar a este montante, a informação não se encaixa na proposta, e o Estado não é obrigado a fazer o pagamento.

“REVOLUÇÃO JURÍDICA”

Assim como ocorre na proposta brasileira, quando um caso é aceito, outro departamento analisa as provas. Para virar caso criminal nos EUA, é preciso haver um padrão de conduta, isto é, ocorrer em mais de um ano.

— Pode demorar para um processo terminar, e o informante tem que ser paciente — conta Orlando Silva, que atua na área criminal do IRS.

Diretor do Government Accountability Project (GAP), organização não governamental que protege whistleblowers desde 1977, Thomas Michael Devine cita os EUA como autor de legislação pioneira:

— Hoje são 40 países com propostas, estamos no meio de uma revolução jurídica.

Um reportante famoso dos EUA é Edward Snowden, que tornou pública a vigilância global ilegal do governo americano. Devine lembra que “pessoas mantêm a sociedade honesta e ajudam as estruturas de poder a prestar contas”, por isso são “pioneiras da mudança”. Cita o reportante como alguém no “cruzamento de valores verdadeiros, mas conflitantes”:

— Não é bom ser o encrenqueiro, ser quem diz “não”. Por outro lado, sempre nos dizem que não devemos ser ovelhas burocráticas. Gostamos de quem segue sua consciência — analisa, citando a importância dos “tocadores de sino” da sociedade e dos que “cuidam do farol para o navio não afundar”.

Fonte: O Globo