Internacional | 20 de fevereiro de 2019 09:18

Nos EUA, plea bargain foi instituído para desafogar tribunais

*ConJur

Uma das propostas de reforma penal apresentadas ao Congresso nesta terça-feira (19/2) pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, o plea bargain – espécie de acordo de delação premiada no qual o suspeito confessa culpa e evita ir a julgamento – foi instituído nos EUA para desafogar os tribunais, abarrotados devido ao aumento de tipos penais. Com o tempo, o instituto se popularizou e passou a ser o desfecho de quase todas as acusações criminais. 

Os EUA, que se tornaram independentes dos ingleses em 1776, assistiram a uma enxurrada de plea bargains ao fim da Guerra Civil (1861-1865). A princípio, os tribunais proibiram o oferecimento de benefícios em troca de confissões. Dessa maneira, os magistrados permitiam que réus retirassem suas declarações. Entretanto, essas decisões não impediram que compromissos de colaboração continuassem a ser celebrados por baixo do pano.

Leia também: AMB apresenta pesquisa com amplo panorama da magistratura brasileira
Ministério da Justiça divide o Pacote Anticrime em três projetos de lei
Em artigo no Jota, juiz Anderson de Paiva aborda o plea bargain

Logo a medida virou uma forma de corrupção de promotores. Há relatos de que, em 1914, em Nova York, um advogado de defesa vendia sentenças da seguinte forma: US$ 150 por 30 dias de prisão; US$ 200 por 20; ou US$ 300 por 10 dias de encarceramento.

Enquanto a corrupção manteve os acordos de delação premiada vivos no século XIX e início do XX, o aumento do número de crimes na legislação penal exigiu que o instrumento fosse legalizado. Basta ver que, em 1912, metade dos réus eram acusados de delitos que não existiam 25 anos antes.

A “ultracriminalização” piorou com a aprovação da 18ª Emenda à Constituição dos EUA, em 1919. Com ela, passou a ser proibida a produção, venda e transporte de bebidas alcoólicas, bem como a importação e exportação. A medida foi um ato moralista e religioso, resultado de décadas de insistência de protestantes. No entanto, a proibição não teve respaldo social, uma vez que o consumo de álcool era popular na sociedade norte-americana, especialmente nas classes altas. Assim, o resultado da emenda foi apenas o de aumentar o número de acusados e condenados por crimes relacionados a essa prática.

Com os tribunais abarrotados de processos, promotores passaram a recorrer à justiça negocial (bargained justice) para conter a avalanche de ações e manter o Judiciário funcionando normalmente. Logo os integrantes do Ministério Público ampliaram os benefícios oferecidos a quem assumisse a prática de crime, além dos delitos que poderiam ser alvo de plea bargain. Os acordos de delação se popularizaram (em 1925, 90% das acusações criminais eram resultado de confissões) e emergiram da era da proibição como uma medida indispensável para combater o congestionamento das cortes.

Suprema Corte

Mesmo assim, tribunais de apelação dos EUA, incluindo, a Suprema Corte, mantinham-se relutantes em aceitar os acordos quando os delatores os contestavam. Na visão das cortes, o plea bargain, na maioria das vezes, era inconstitucional, pois as ameaças de penas maiores tornavam a adesão à proposta dos promotores involuntária.

A situação começou a mudar quando a American Bar Association (ABA), entidade equivalente à Ordem dos Advogados do Brasil, passou a admitir os benefícios da colaboração premiada. Tal como grande parte dos criminalistas atualmente no Brasil, a ABA considerava que o instituto violava o direito de defesa dos investigados. Entretanto, em 1967, a instituição apontou que os plea bargains eram necessários, uma vez que o sistema judicial norte-americano não tinha recursos para dar conta de tantos processos penais.

Três anos depois, a Suprema Corte julgou a questão de forma definitiva no caso Brady v. United States. O processo envolvia um sujeito, Robert Brady, acusado de sequestro e lesão corporal. Este delito, segundo a legislação federal, poderia ser punido com pena de morte, se o júri assim decidisse. Após saber que seu parceiro no crime havia confessado e concordado em testemunhar contra Brady, este aceitou mudar seu depoimento e se declarar culpado em troca de benefícios. Por isso, ele foi condenado a 50 anos de prisão, posteriormente reduzidos para 30.

Porém, Brady depois mudou de opinião e alegou que acordos de delação premiada seriam inválidos quando celebrados sob medo de pena de morte. Mas a Suprema Corte não aceitou o recurso. Segundo os magistrados, um plea bargain é válido se o investigado estiver plenamente ciente das conseqüências, desde que ele não tenha sido induzido por tortura, coerção, promessas falsas, impossíveis de serem cumpridas ou impróprias, que não tenham relação com as funções do promotor (como suborno).

Na visão dos ministros, Brady não havia sido submetido a nenhuma dessas formas de manipulação de vontade. Para eles, não existia evidência de que o acusado estava tão paralisado pela ameaça de receber pena de morte que não pudesse, racionalmente, pesar os prós e contras de colaborar com a Justiça e ir a julgamento pelo júri.

Guia de sentenças

A decisão da Suprema Corte tirou uma das duas últimas amarras que ainda limitavam o plea bargain. A outra foi solta pela entrada em vigor das United States Federal Sentencing Guidelines (diretrizes para sentenças federais dos EUA), no meio da década de 80. Diferentemente do sistema brasileiro, o norte-americano não estabelecia penas mínimas e máximas para cada crime nas leis penais. Isso era determinado pelo juiz da causa. E as sentenças também não precisavam quantificar a pena do condenado, apenas fixar parâmetros para ela. Quem definia o tempo certo era um órgão administrativo, e isso ocorria depois que a pessoa já tivesse começado a cumprir sua punição.

Mas havia muita disparidade entre as sentenças. Para diminuir isso, foram elaboradas as diretrizes. Nelas, foram estabelecidos parâmetros para as decisões judiciais em crimes federais graves. As sentenças passaram a ter que levar em conta a conduta do infrator e seus antecedentes criminais.

Esses padrões trouxeram segurança jurídica às delações premiadas, e permitiram que os promotores pudessem oferecer benefícios significativos a quem confessasse ter cometido um crime. E mais: as diretrizes deram origem aos “diferenciais de sentença”. Tal índice aponta a diferença entre a pena que o acusado pode receber se firmar acordo de colaboração e a que lhe pode ser imposta se ele for condenado por júri. Quanto maior a diferença entre as duas, maior a chance de o investigado aceitar a proposta do Ministério Público.

Com sinal verde dos legisladores e magistrados, o plea bargain tornou-se hegemônico nos EUA. Em 2011, mais de 96% dos casos penais terminavam com confissão de culpa em vez de julgamento.

Fonte: ConJur