Judiciário na Mídia Hoje | 16 de abril de 2019 14:06

Tribunal julga inconstitucionais 80% das leis questionadas em 2018

*ConJur

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro | Foto: Matheus Salomão

A crise política que abala o Estado do Rio de Janeiro não deixou incólume o trabalho de seus legisladores. As duas principais casas legislativas do Estado — a Câmara Municipal do Rio de Janeiro e a Assembleia Legislativa — foram as responsáveis por quase metade das leis julgadas inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça do Estado em 2018.

Se inserirmos no quadro o município de Volta Redonda, temos o que importa em termos de controle de constitucionalidade no Estado. Nada menos que 79 das 135 representações de inconstitucionalidade julgadas pelo TJ-RJ em 2018 tinham como objeto leis aprovadas pelos deputados estaduais fluminenses e pelos vereadores dos dois municípios.

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As outras 56 ações de inconstitucionalidade julgadas no mérito pelos desembargadores do Órgão Especial se distribuíam entre outros 34 municípios. No total, o colegiado do TJ-RJ julgou no mérito 135 representações de inconstitucionalidade, das quais 103 foram consideradas procedentes. Ou seja, as normas de que eram objeto, parcial ou totalmente, feriam a Constituição do estado ou a Constituição Federal. Significa que 76% das leis analisadas foram consideradas inconstitucionais.

O grau de animosidade entre os poderes, no caso do município do Rio de Janeiro, pode ser aferido tanto pelo número total de ações — 42 — quanto pelo índice de processos julgados improcedentes — 38%. Em boa parte das 42 representações de inconstitucionalidade julgadas, o prefeito alegou que os vereadores se imiscuíram em assuntos que considerou serem de sua exclusiva competência.

O Órgão Especial baseou-se em nova jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu um alcance maior da iniciativa legislativa dos vereadores, para considerar improcedentes boa parte das alegações do Executivo.

“De acordo com a atual orientação do Supremo Tribunal Federal, não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a administração pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos”, afirmou o desembargador Carlos Santos de Oliveira, citando decisão do ministro Gilmar Mendes no julgamento do Recurso Extraordinário 878.911/RJ, que teve repercussão geral declarada.

No caso do vice-campeão de inconstitucionalidade, o estado do Rio de Janeiro, chama a atenção que a maior parte das arguições de inconstitucionalidade foi levantada por entidades da sociedade civil. Das 21 representações julgadas, 16 foram feitas por entes como a OAB, a Fecomércio ou a Firjan. Ou seja, a grita contra a qualidade das leis produzidas partiu da sociedade prioritariamente. Um terço dos questionamentos foi considerado improcedentes.

Duas tiveram como autor o então deputado estadual e agora senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), que questionou a constitucionalidade das Leis estaduais 7.010/2015 e 7.011/2015, no âmbito da Lei federal 13.276, que proibiu a revista íntima de mulheres em órgãos públicos, inclusive à entrada de presídios. As duas representações foram consideradas improcedentes.

Em Volta Redonda, décimo município em número de habitantes do estado, ficou patente o litígio entre os poderes Executivo e Legislativo. Todas as 16 representações de inconstitucionalidade do município foram propostas pelo prefeito contra leis iniciadas e aprovadas na Câmara dos Vereadores. Em 13 delas foi declarado o vício de iniciativa — quando os vereadores fazem leis em matéria que é de competência dos prefeitos.

Em três ocorreu também invasão de competência do estado e da União pelo município. As três leis tratam de alterações no currículo das escolas municipais, matéria sobre a qual o município não tem competência. Uma quarta lei, que prescrevia que fossem dadas conferências sobre preservação ambiental nas escolas municipais, foi considerada constitucional.

Também para os demais municípios, as principais causas de inconstitucionalidade das leis municipais continuam sendo o vício de iniciativa ou a invasão de competência — quando o município se arvora a legislar sobre questões que são de alçada privativa do estado ou da União. Está tudo de nido nos artigos 7º e 112 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que tratam da separação e autonomia dos poderes bem como da inciativa de fazer leis de cada um.

Um bom exemplo disso é o de Angra dos Reis — das quatro leis analisadas na pesquisa, três foram consideradas inconstitucionais por vício de iniciativa e uma por usurpação de competência da União. Leis de iniciativa de vereadores instituíram bolsa assistencial para atletas amadores, estenderam o período de licença para servidoras gestantes e em fase de aleitamento e concederam transporte público gratuito para desempregados. Apesar das boas intenções, não valem, pois as bondades só poderiam ser concedidas por leis de iniciativa do prefeito, que é quem sabe das possibilidades orçamentárias para pagar o pato.

A ementa da Ação 0016309-04.2017.8.19.0000, de Angra dos Reis, afirmada pelo desembargador Marcos Alcino, resume a situação: “Atribuição de encargos a órgãos da administração pública. Violação do princípio da separação de poderes e da reserva de iniciativa legislativa privativa do chefe do Poder Executivo. Ausência de previsão de fonte de custeio”.

No outro caso, o município aprovou lei para instituir a “obrigatoriedade de compensação entre o tempo pago e o tempo efetivamente utilizado por veículo em estacionamentos públicos e privados”. Como observou o relator da ação, desembargador Garcez Neto, o direito a propriedade privada está afeto ao Direito Civil, o que atrai a competência privativa da União para legislar sobre a matéria.

Legislar sobre o serviço público é um foco constante de inconstitucionalidades. A primeira tentação é burlar o artigo 77 da Constituição fluminense, que repete o princípio constitucional de que a porta de entrada do serviço público é o concurso. São inúmeros os artifícios usados para tentar burlar essa exigência. Campos, São Gonçalo, Nova Iguaçu e Paraty, entre outros, zeram isso propondo mudanças no plano municipal de cargos e salários. São João da Barra tentou promover automaticamente servidores celetistas para o regime estatutário. Niterói e Santo Antônio de Pádua recorreram à contratação temporária de funcionários.

Outra forma de contornar os rigores do concurso público é a tentativa de incorporação de gratificações, como zeram Barra do Piraí, Belford Roxo, Rio das Ostras e São Pedro da Aldeia. Vale lembrar que quase sempre essas irregularidades são acompanhadas do vício de inciativa: ou seja, ocorreram em leis que tiveram sua origem na Câmara de Vereadores muito embora legislar sobre servidores públicos seja uma prerrogativa do Poder Executivo.

Também a obrigação de fazer licitações para a contratação de obras e serviços públicos é fonte inesgotável para agressões constitucionais. Como sói acontecer, também neste caso, não faltam boas intenções.

Os vereadores de Cabo Frio, por exemplo, dispuseram-se a aprovar lei que restringia o direito de explorar o serviço de estacionamento a entidades beneficentes. “A reserva da contratação, direcionada a um número restrito de entidades constitui afronta ao artigo 77, caput, e inciso XXV, da Constituição estadual e aos princípios da impessoalidade e igualdade. Procedência da representação”, ensinou o desembargador Antônio Carlos Amado em seu voto.

Em fevereiro de 2018, o Órgão negou incidente contra a Lei estadual 6.419/2013, que estabelece que, nos cartazes de preços de produtos expostos em lojas ou em qualquer tipo de mídia veiculada no Rio de Janeiro, o tamanho para divulgação do preço à vista deve ser sempre maior do que o para a divulgação do valor das parcelas.

Relator do caso, Luiz Zveiter disse que a lei estadual é uma norma consumerista, portanto, União, estados e municípios podem legislar concorrentemente sobre o tema, como fixa o artigo 24, VIII, da Carta Magna. Assim, o ex-presidente da corte afirmou que a lei não possui inconstitucionalidade formal. Os demais integrantes do Órgão seguiram seu entendimento.

*Reportagem especial do Anuário da Justiça Rio de Janeiro 2019, que será lançado nesta quarta-feira (17/4) no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.